terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Muse e os perigos do "nano-plágio"

Quando a gente está escrevendo uma música e vem à mente uma melodia bacana, uma preocupação constante é "eu inventei isso, ou estou lembrando de alguma música?".

Na minha experiência, eu percebi que é muito comum, especialmente ao escrevermos melodias de voz para uma letra, acabarmos lendo uma frase da letra cantando nela um trechinho de melodia de alguma música que conhecemos que seja no mesmo tom e/ou no mesmo clima da música que estamos fazendo, e cuja métrica encaixe. É como se o cérebro inconscientemente quissese ajudar: "aqui está uma melodia de cinco sílabas em sol maior em mais ou menos 130 bpm". Isso é mais comum ainda reaproveitando esses trechinhos das nossas próprias músicas anteriores, talvez porque sejam em tons e estilos em que estamos acostumados a cantar... com o tempo, essas repetições entre músicas acabam virando os nossos "tropes" melódicos, formando o nosso estilo identificável, até. Mas vez que outra, alguma frase melódica de alguém escapa e entra na nossa música.

Na maioria das vezes, a melodia é tão "óbvia" que ela "não tem dono": milhares de músicas vão ter uma mesma sequência de cinco notas ascendentes, por exemplo. Outras tantas vezes, é simplesmente uma coincidência, pois afinal, existe uma quantidade limitada de maneiras de alinhar as notas de uma escala. Mas às vezes alguma coisa faz a gente perceber que o autor "puxou sem querer" uma melodia de algum lugar. Tipicamente, é quando o contexto da música entrega.

Ouvindo o excelente "The 2nd Law", do Muse, teve três momentos em que a minha experiência de ouvir o disco foi travada por um súbito "eu conheço isso". Nada que eu considere um plágio no sentido de uma falta de originalidade ou muito menos de má-intenção, mas o que eu chamaria de "nano-plágios" (sim, menores que "micro-plágios") onde a coincidência parece ser coincidente demais pra não ter havido alguma influência.

1) Panic Station

A melodia do verso encaixa e é no mesmo tom de Suicide Blonde do INXS:

"You won't get much closer to sacrifice it all / You won't get to taste it with your face against the wall" → "You want to make her, Suicide Blonde / Love devastation, Suicide Blonde"

Por que eu notei: de maneira geral, estilisticamente de maneira geral me remete a INXS, com os synth-brass anos 80 nos refrões e, em especial, a intro com a caixa marcada e os acordes agudos (que no caso do Muse são tocados no baixo) me remetem à intro de "New Sensation".

2) Panic Station, de novo

No meio da música tem uma linha de melodia de Thriller do Michael Jackson. Só não é mais idêntico em função do tom das músicas: no Muse é em Em, em Thriller é em C#m, mas harmonicamente as melodias têm a mesma função.

"And this chaos, it defies imagination" → "And hope that this is just imagination" (2:14)

Por que eu notei: Talvez passasse desapercebido se não terminasse com a mesma rima na letra. Eu acho que essa similaridade faz mais pessoas inconscientemente associarem essa música ao Michael Jackson também: eu li em duas resenhas diferentes comparações entre essa música e Michael Jackson, embora pra mim, fora a vibe geral anos 80 dela, ela não me remeta a MJ.

3) Explorers

A seção de "piano, voz e cozinha (baixo+bateria)" começando em 3:11 me deu uma sensação estranha quando ouvi. Até que eu parei pra pensar:

"O que é, o que é: rock moderno baladinha feito com piano, voz e cozinha?"
Aí ficou fácil. Quando caiu a ficha que aquela parte parecia muito com Keane, e como eu não conheço quase nada de Keane, assumi que deveria ser algo de alguma das músicas mais conhecidas deles. Dito e feito: a seção é no mesmo tempo (quase o mesmo bpm), mesma levada de piano, e mesmo tom de "Everybody's Changing". E na frase chave da saída da seção, as duas notas acentuadas, a do início e do fim, são iguais à frase chave da saída do refrão do Keane:

"Can you freeee me / free me from this woooorld" (3:30) → "Cause everybody's changing / and I don't know whyyyy"

E daí?

Bom, não quero despertar com isso a fúria dos Musers. Eu poderia citar outros exemplos: tem uma famosa do Dream Theater no "Scenes From a Memory" com uma melodia do Metallica. Aliás, o DT do Scenes from a Memory em diante é campeão em "soar como outras bandas", o que é constante alvo de críticas, mas não é disso exatamente que estou falando aqui.

O que eu acho interessante notar é que eu acho que esses "nano-plágios" ocorrem com maior frequência quando a gente, enquanto compositor, se encaixa demais dentro de um estilo para uma determinada música ou seção. O exemplo de Explorers pra mim é clássico: eles estavam tocando tal-e-qual Keane, e eis que as referências melódicas vieram junto. Não é coincidência que na música do Dream Theater a melodia idêntica à do Metallica tenha aparecido justamente na seção mais heavy metal da música. Se as mesma frase de 7 ou 8 notas do Metallica tivesse aparecido em uma seção piano-e-voz do Dream Theater aí sim seria mera coincidência. Da mesma forma, em Panic Station o Muse se propôs a fazer um pastiche dos anos 80, e aí frases melódicas do INXS e Michael Jackson acabaram aparecendo.

Quando a gente está escrevendo algo que pretende ser "original" (nesse momento é claro que alguém vai aparecer e dizer que "nada é 100% original", mas eu me refiro aqui a uma expressão de um trabalho artístico autoral que pretende ser inédito, diferente de por exemplo um jingle feito por encomenda cujo cliente pede que seja "parecido com a música X"), uma maneira de tentar fugir dos riscos do "nano-plágio" é explicitamente evitar de se encaixar plenamente um uma determinada referência de estilo.

O Dream Theater, por exemplo, é frequentemente culpado disso, no momento em que eles explicitamente organizam os seus arranjos com coisas como "seção Rush" e assim por diante (palavras deles).

Obviamente, chamar uma parte de "seção Rush" ajuda muito a comunicação entre as pessoas, porque muitas vezes quando estamos escrevendo uma parte de uma música, a gente tem uma referência geral de que o que estamos fazendo naquela parte é pra ficar meio parecido com X ou Y. Porém, quando estávamos gravando o Color Bleed, por exemplo, eu sempre evitava de falar quais eram as referências das partes (o que dificultava o trabalho e enchia muito o saco dos guris). Eu conscientemente queria que eles trabalhassem as partes "sem referências" pra que eles levassem os arranjos e melodias pra outros lados. Quando todos os vetores da música apontam na mesma direção, é meio caminho andado para algum "nano-plágio" escapar, ou no mínimo, para a música ficar parecendo uma "imitação de X ou Y".

Mais recentemente, há uns tempos atrás, estávamos passando uma música num ensaio que tinha uma levada de piano meio nostálgica, à la Beatles. O Gustavo, baterista, ouviu e disse "ah, pra essa música fica legal fazer uma levada meio Ringo." É claro que uma bateria estilo Ringo cai bem com um piano estilo Beatles, mas é por isso mesmo que a gente não deve fazê-lo.


Às vezes eu fico com a impressão de que falta às bandas um ouvido de fora que aponte a elas quando elas caem nessa armadilha estilística. Coincidentemente, tanto os discos do Muse do "The Resistance" (que teve críticas de excesso de Queen-ismos) em diante como os discos do Dream Theater a partir do "Scenes from a Memory" são produzidos pelas próprias bandas. Eu sou um ferrenho defensor da liberdade artística das bandas para compor e arranjar, mas talvez esteja faltando alguém no estúdio pra dizer "pô, isso aí está parecido demais com..." Até porque, talvez esteja parecido demais mesmo.