quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Elegia a Steve Jobs

Talvez por eu ser o "cara de informática" entre os contribuidores mais ativos desse blog, ou por ter escrito um post chamado "Por que eu resolvi boicotar a Apple" aqui há algum tempo atrás, pareça apropriado eu escrever um post sobre a morte do Steve Jobs. Mas esses não são os motivos.

Minha história pessoal com a empresa de que ele foi co-fundador vem de muito longe. Eu tinha seis anos e um clone brasileiro de Apple II (o antecessor do Mac) foi o primeiro computador que eu vi ao vivo. Eu lembro da cena até hoje, tão bem quanto eu lembro do meu primeiro beijo. Se teve um momento que eu posso apontar e dizer "ali a minha vida mudou", foi naquela tarde de 1986. Naquele dia o computador chegou na nossa casa; era do meu irmão. Um ano depois, ele já era meu.

Isto, crianças, é um computador de 0,001 GHz

Minha rotina era voltar da escola, almoçar e depois passar a tarde programando aquela caixa bege com uma maçã colorida desenhada. Eu tinha 2 ou 3 colegas da turma de 42 que sabiam mexer em computador (isso era tão incomum que nem sequer nos chamavam de "nerds" na escola). Esses outros poucos todos tinham computadores MSX. Eu era a única pessoa que eu conhecia que tinha um Apple II. Ninguém com quem trocar dicas ou programas além de uns poucos livros e revistas. Aquele computador era praticamente parte da minha concepção pessoal de indivíduo. Naquele tempo, Hisham ↔ Apple II.

Passados os anos 80 e meados dos 90, era hora de trocar de computador. O sonho era trocar para um dos Apple "novos", os Macintoshes. Não esses Macs que vocês conhecem. Algo como um desses aqui:

Um Mac dos anos 90

Infelizmente eles eram estupidamente caros no Brasil, ainda mais para um adolescente pedindo pro pai. Minha segunda opção era um Amiga, mas acabei ganhando um PC 486. Na época, foi "meno male", porque com a popularização dos PCs acabei com isso saindo da minha "ilha" e podendo ter contato com uma base de software maior (isso era antes da internet, e software tinha que passar de mão em mão — sim, pirataria, porque a imensa maioria não tinha para comprar no Brasil nem se a gente quisesse). Além disso, a Apple ia mal das pernas. Era a fase em que o Steve Jobs estava fora da empresa. A história é famosa e não vou repeti-la aqui.

Passei anos afastado do mundo Apple, mas acompanhando de longe. Com a chegada da internet, revisitei meu passado de Apple II através de emuladores e acompanhei as notícias da volta de Jobs à empresa com o curioso cargo de "iCEO" (interim CEO) e o posterior lançamento do "iMac", cuja ironia no nome era evidente a todos.

O primeiro iMac: quando foi lançado, o povo reclamava que ele não tinha drive de disquete

Quando ele voltou e lançou o iMac, a Apple estava bem mal das pernas, perigando quebrar, assim como aconteceu depois com tantas outras empresas super-cool dos anos 80 e que não existem mais, como a Sun e a Silicon Graphics. (Parênteses: se vocês acham o hardware da Apple bacana, comparem o Mac bege dos anos 90 da foto ali de cima com essa workstation Silicon Graphics da mesma época:

Uma Silicon Graphics dos anos 90. Outra coisa, né?

Fecha parênteses.) Pois é, coolness existia, estava por aí, mas era um animal ameaçado de extinção num mundo de informática dominado por PCs genéricos rodando Windows 98 infestados de vírus, DLLs incompatíveis e conflitos de hardware (lembram do stress que era configurar coisas como COM, IRQ e DMA de placas de modem, som, etc.?)

Quando foi afastado da Apple, Jobs passou os anos 90 no mundo das workstation high-end, onde todas rodavam alguma versão do sistema operacional mais cool que há, o Unix. Quer dizer, cool para quem sabe apreciar a "coolness de um sistema operacional", ou seja, programadores. Sistemas da família Unix não eram pra qualquer um. Eram complicados de usar e só rodavam em máquinas caras, workstations de alguns milhares de dólares. Uma trupe de voluntários espalhados pela internet, porém, estava trabalhando duro para mudar isso e tornar o Unix acessível a todos (um deles, um certo estudante finlandês chamado Linus, acabou cedendo o próprio nome a esse libertário membro da família Unix).

De volta à Apple, Jobs trouxe da sua experiência no mundo das workstations uma simples ideia que parecia alienígena ao mundo dos computadores pessoais: fazer computador usando um sistema operacional que, bem, funcione.

A mídia vai fazer homenagens e homenagens a Jobs dando a ele títulos como "o criador do iPod", "o criador do iPhone" e coisas do gênero. Dar a ele crédito como "criador" desses produtos, onde inúmeras pessoas trabalharam na pesquisa e desenvolvimento, desde o design à engenharia, é algo simplista e um tanto errado. Mas todo o crédito do mundo deve ser dado ao pulso que ele teve de bancar a migração do sistema operacional dos Macs (chamado inicialmente apenas de "System", e depois "Mac OS") para uma sólida base Unix: o Mac OS X. E depois que o mundo descobriu o que é um computador que funciona, tudo mudou.

À primeira vista pode parecer que eu estou apenas sendo um nerd, valorizando uma tecnicalidade que ninguém vê em detrimento a todos esses outros grandes sucessos da Apple dos quais Jobs foi sempre a face visível. Mas não. Essa cartada, e o sucesso dela (que lhe deu cacife para os projetos posteriores, começando pelo iPod), resume a maneira de pensar que vigorou no segundo reinado de Steve Jobs na Apple: "trabalhar com uma ideia simples e fazê-la direito de modo a produzir algo que preste."

Um enunciado desses pode parecer ridiculamente óbvio, mas quando a gente destrincha nos detalhes, quem mais fazia (ou faz) isso? A gente vai lembrando das outras grandes empresas de informática, e incrivelmente, ninguém mais se encaixa nessa visão. Empresas como a Microsoft, amarradas em perpetuar bugs passados em prol da eterna compatibilidade, nunca assim corrigindo os próprios erros? Empresas como Dell, HP e cia, que te vendem laptops com um mar de porcarias e iconezinhos idiotas pré-instalados? Empresas como a Sony, que desrespeitam o consumidor com reincidentes casos de spyware? Essas são tosquices que a gente nem conseguiria imaginar vindo da Apple. Num mundo onde a tosquice impera, a Apple conseguiu se tornar uma empresa mítica, simplesmente não sendo tosca.

Quando o iPhone surgiu, basicamente todas as features que ele possuía já existiam em um ou outro telefone. Palmtops como o Palm já tinham grandes comunidades de desenvolvedores e bastante gente já levava centenas de aplicativos no bolso; mas isso não havia chegado ao grande público. O design do iPhone era simplesmente a coisa mais óbvia a se fazer. Mas os concorrentes deixavam seus smartphones toscos de propósito: qualquer outro telefone da época, quando tu pegava, era "legal, só que tem esse UM defeito". Coisas que tu notava que tinham sido deixadas de fora para que o modelo "330X" fosse pior que o "350X" (só que daí o maldito 350X não tinha a câmera boa como a do 330X, ou algo do gênero).

Antes do lançamento do iPad, eu lembro de falar com meus amigos, "cara, toda a tecnologia pra fazer tablets tá aí, e só o que existe é esses híbridos malucos da HP rodando Windows, ou palmtops baseados em plataformas moribundas, e nenhuma empresa, nem Sony, Dell, HP, ninguém, se presta a fazer um laptop touch sem teclado! Vai acabar a Apple lançando um, como fez com o iPhone, e aí todos os concorrentes vão correr e lançar alguma imitação tosca em seguida."

Se tem algo por que o Steve Jobs merece ser lembrado e homenageado, é o fato de ele ter sido um CEO de empresa de tecnologia que mandou os seus funcionários fazer o que todo mundo que trabalha com tecnologia deveria fazer: olhar para frente, e não pro lado.

Sim, isso deveria ser a regra, mas num mundo onde todas as empresas estão olhando para o lado, cuidando cada passo que dá o concorrente, medindo cada risco e o seu impacto no relatório trimestral para os acionistas, promover inovação em uma empresa de um mercado tão ferrenho quanto tecnologia se tornou a exceção.

Quanto ao futuro da Apple, eu não me preocupo. Mesmo que a Apple pare de inovar na escala em que inovou nessa década passada, ela hoje tem o potencial de se manter por cima da carne seca por um longo tempo, assim como a Microsoft ainda é líder de mercado com base na inércia do seu sucesso na era MS-DOS/Windows. iTunes virou sinônimo de comprar música em boa parte do mundo. Aliás, a Apple Computer, aquela empresa que eu acompanhava desde criança, muito antes dos hipsters colarem maçãzinhas nos seus carros, não existe mais: mudou de nome, virou Apple Inc., empresa de produtos eletrônicos variados. E mesmo que tudo dê errado com a Apple e ela quebre, bom, tantas outras empresas cool já vieram e já foram. Eu iria sentir falta dos Macs tanto quanto sinto falta dos Amigas.

Lembro quando a Apple estava por baixo no fim dos anos 90 e a gente falava: "Tu acha que a Microsoft é malvada e a Apple é boazinha? Se eles estivessem em posições trocadas iam fazer igual." E sim, assim que ficou por cima a Apple fez sacanagens como aquela que que eu falei no post do ano passado (update: algum tempo depois, ela voltou atrás). A diferença é que mesmo em posições trocadas, uma empresa como a Microsoft não inova como a Apple. A Microsoft trabalha com "good enough to sell". Falta à Microsoft a fagulha do espírito do "insanely great". Assim como falta a tantas outras empresas, que às vezes têm genialidade dentro de casa e não sabem o que fazer com ela. A Xerox tinha interfaces gráficas com mouse por uma década, mas não sabia o que fazer com isso.

O que eu espero que fique como legado de Jobs são as lições que ele deu pra essa indústria da qual eu faço parte. De que é melhor fazer o simples, fazer o que presta, e não ser tosco. De que, se promovido sem grandes mancadas, o melhor produto vai realmente ganhar o mercado. De que os detalhes importam. De que não basta ter a melhor ideia, tem que fazê-la acontecer.

O Apple I

Mas pessoalmente, o que eu gostaria mesmo era de agradecer a Steve Jobs por ter feito sair da garagem a genialidade de Steve Wozniak, ajudá-lo a "fazer acontecer", e assim transformar aquele protótipo em caixa de madeira dele em uma empresa que criou a noção de "computação pessoal" antes do surgimento do PC, e que com isso levou computadores às casas de milhões de pessoas, incluindo à daquele garoto na longínqua São Leopoldo em 1986.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Sobre Dublagens e Legendas, ou "Porque incomodar o Ulisses é divertido"

Meu querido amigo Ulisses escreveu no seu blog um Manifesto contra o filme dublado, cheio de argumentos bons e coerentes (e alguns, nem tanto: por que uma determinada atitude que não prejudica ninguém e é o gosto de alguém não seria defensável? Eu acho o fato de que uma grande parcela prefere filmes dublados uma excelente defesa para a presença deles no cinema — assim como é a existência de cópias 2D para filmes que foram pensados em 3D, por exemplo). Tudo o que o Ulisses falou sobre os problemas do filme dublado é verdade:
  • Adultera o trabalho do ator
  • Adultera o som
  • As falas são alteradas por gente que não participou da sua concepção
Só que aí a gente pode continuar pensando esse assunto: se a dublagem, nas palavras do Ulisses, "deturpa a obra cinematográfica", o que dizer das legendas?

É, as legendas. Se a dublagem adultera o trabalho do ator, as legendas adulteram o trabalho do roteirista (e do ator, em diálogos improvisados). Muitas vezes a sutileza de uma escolha de uma palavra se perde totalmente, pra não falar das vezes em que a tradução da legenda está simplesmente errada. Quantas vezes vejo gente, ao citar uma fala de um filme, na verdade citando a legenda: ou seja, reproduzindo a escolha de palavras da pessoa responsável pela tradução, e não pelo roteiro.

Em outras situações uma frase é enunciada com determinadas pausas de modo a produzir um determinado suspense, para que uma determinada expressão facial acompanha aquela palavra-chave... e a legenda já mostrou a frase inteira antes de o ator ter a chance de dizê-la.

Além disso, se a dublagem afeta o som, a legenda afeta a imagem. A gente muitas vezes nem se dá conta do quanto a legenda desvia o nosso olhar. E lá se vai o foco na fotografia do filme. Não me refiro apenas a coisas como cenas de escuridão total com apenas uma voz em off, que passam a ter um letreiro na tela. Todo o pensamento na composição de uma cena na tela, conduzindo o olhar meticulosamente como um quadro... e nossas vistas passando a metade do tempo olhando para o canto inferior central da tela, com frases que piscam a cada 3 segundos buscando nossa atenção.

Quem fala o idioma estrangeiro do filme (tipicamente inglês, nos filmes que passam aqui) percebe isso bem menos. Isso se ameniza mesmo em línguas que não dominamos mas com a qual temos alguma familiaridade (espanhol, francês, italiano...). Mas nem sempre, e nem para todos, é assim. Esses tempos assisti a um filme japonês depois de muito tempo só vendo filmes nessas outras línguas. No momento em que eu tive uma relação de dependência total da legenda para entender o que era dito, fiquei chocado ao ver o quanto da imagem eu perdia. Eu vi que não conseguia olhar nos olhos dos personagens durante um diálogo.

Senti na pele o que quem não fala nada de inglês sente e vi ali o quanto as legendas afetam a experiência de ver um filme, e o quanto a gente que está acostumado e fala outro idioma não percebe isso. Acabo pensando que isso é mais um pequeno fator para a falta de popularidade de filmes estrangeiros nos EUA, por exemplo, ou para dublagem ser mais a regra do que a exceção em vários países, como os de língua alemã.

Não estou com isso defendendo que dublagem seja melhor do que legendas. Entre as duas opções, eu sempre prefiro filmes legendados. Mas mesmo se você fala o idioma original do filme, não há como ignorar totalmente as legendas. Eu assisti ao longo de uma semana os filmes do Harry Potter, todos no original, sem legenda. Ao chegar no cinema para ver o último, cada nome de personagem ou objeto que era baseado na tradução do livro e aparecia na legenda do filme diferente do original ("Olivaras!?") me distraía e inevitavelmente incomodava. Prova que, mesmo não precisando da legenda, quando ela está lá ela acaba puxando a atenção.

Porém, tem o seguinte: muitas pessoas não sabem ler, ou sabem mas não têm o traquejo pra ler confortavelmente na velocidade das legendas. Sim, eu conheci pessoas nessas duas categorias, e sim, eram pessoas com viabilidade econômica de ir ao cinema. O filme dublado é uma excelente opção para elas. Preferiria eu ver o Harry Potter 7.2 no cinema em 3D com som original e sem legenda alguma? Sim, preferiria (ainda mais num filme 3D, onde a legenda interfere com a profundidade e o senso de imersão). Mas assim como não sou elitista a ponto de clamar por salas de cinema sem legenda, também não vou defender o fim dos filmes dublados nas salas de cinema. Acho que tem que haver espaço pra tudo, para que haja espaço para todos.