quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Incertezas, parte 2: compor

(Link para a parte 1)

Compor pra mim sempre foi algo natural. Tão natural que a gente não chamava de "compor", a gente chamava de "fazer música". E não digo isso no sentido de que eu me sinta um compositor nato ou qualquer bobagem dessas -- digo no sentido de que fazer música era algo que fazia parte da minha vida desde antes de eu começar a fazer música.

Graças ao meu irmão mais velho Jorge, o rock sempre circulou dentro de casa. Tem foto minha com 4 anos de idade imitando o Gene Simmons na festinha de aniversário. Eu lembro de fugir com medo pelos corredores da casa quando ouvia a introdução de Iron Man do Black Sabbath. Num canto empoeirado da antiga casa talvez ainda exista uma fita VHS com uma filmagem mostrando eu com uns 5 ou 6 anos ouvindo o Alive II. Eu lembro de quando o Appetite for Destruction chegou lá em casa. O lançamento do sucessor do Slippery When Wet (ou melhor, a dia da chegada do disco lá em casa) foi um momento mais esperado pra mim do que a noite de Natal (eu lembro que no primeiro dia Jorge não me deixava encostar no vinil zero-quilômetro do New Jersey). Lembro de me divertir com as maluquices do A Farewell to Kings, o único vinil do Rush que tinha lá em casa, que eu achava que faria uma boa trilha sonora para um filme de ficção científica, junto com o Rendez-Vous do Jean-Michel Jarre.

E além de ouvir as músicas das bandas, eu ouvia as músicas que o Jorge fazia, junto com o amigo-de-fé irmão-camarada dele, o Gustavo. Meu pai era muito bravo e não deixava os amigos do Jorge sequer entrarem lá em casa, porque dizia que eram "más influências". Assim, eu só conhecia o Gustavo pelas vezes que eu atendia a porta olhando pela sacada quando a campainha tocava ("Teu irmão tá aí?") e pelas fitas cassete das gravações dele com o Jorge.

Meu irmão tinha 18 anos (eu tinha 9). As gravações eram caseiras, coisa feita com aparelho de som com microfone embutido e os botões REC e PLAY. Um ou dois violões (o Jorge não tinha instrumento nessa época, mas aprendia a tocar na casa dos amigos), duas vozes. E as músicas. As músicas... bem, as músicas eram muito boas! Melodias e refrões cujos trechos eu me lembro até hoje, cantadas num inglês às vezes cambaleante (que eu não fazia ideia na época, e que eles mesmos viriam a corrigir poucos anos depois). Um monte de músicas de três minutos cada, enchiam uma fita, que eu escutava over and over and over. "While Alcohol Rules", "Present/Future/Past" e aquela que tinha tudo pra ser o single, "Easy to say" (os vocais em harmonia do refrão tocam na minha cabeça agora).

Eu gostava daquelas músicas tanto quanto eu gostava das músicas das bandas dos discos. Eu ouvia aquela fita e conseguia imaginar as músicas tocadas com baixo, guitarra e bateria, com toda a super-produção de estúdio dos anos 80, assim como alguém que lê um livro consegue imaginar a ambientação de um palácio. E eu imaginava que as músicas dos discos nasciam do mesmo jeito que as músicas do meu irmão e do amigo dele. Uma ideia, um violão, escolhe os acordes e a letra, sai tocando, e era isso. Sem grandes mistérios.

Quando eu tinha 10 anos o Jorge passou seis meses nos Estados Unidos e quando voltou, trouxe um violão e uma guitarra. Assim como eu aprendi a programar com o computador que o pai comprou pra ele, ali então eu de novo filei o brinquedo do irmão mais velho e comecei a brincar com os instrumentos. (Ele até trouxe um tecladinho de brinquedo pra mim, que eu usei bastante até mas nunca levei muito a sério... só olharia pras teclas de novo muitos anos depois.) Não demorou muito e eu já estava me virando com os acordes, escolhendo as músicas pra tocar nas revistinhas que não tivessem pestana. Quando me perguntam, eu digo que aprendi a tocar oficialmente aos onze anos.

Eu não lembro do dia exatamente, é um daqueles casos que tu lembra da lembrança tantas vezes que não consegue mais lembrar do fato original, mas um dia, acho que com 12 anos, o Jorge me viu tocando e perguntou como quem não quer nada: "tu só fica aí tocando acordes e nunca faz nada? Faz uma música." Ele nem lembrava mais de ter dito isso quando, dias depois eu bati na porta do quarto dele pra mostrar a música que eu tinha feito. Desse dia eu me lembro bem. Ele se surpreendeu que eu não só tinha feito a música, mas também já tinha uma letra, e em inglês (no melhor que eu podia fazer à época). O mais curioso foi a avaliação que ele fez da música, que na ocasião não fez absolutamente nenhum sentido pra mim: "parece os sons dessas bandas de Seattle que tão aparecendo", sendo que eu nunca tinha ouvido nenhuma delas (imagine se algo do tipo entraria dentro do templo do hard rock que era a nossa casa) e já me achava no lucro por saber aos 12 anos de idade que Seattle era uma cidade dos Estados Unidos.

Depois dessa primeira (chamada "Walkin' Alone", assim mesmo, com a típica apóstrofe dos títulos da época, e que eu ainda me lembro como se toca) não tardaram a aparecer outras. Umas que eu lembro, outras que não. Eu lembro que eu fazia muita música, e jogava muita música fora. Folhas e folhas com letras e acordes. Acho que foi mais ou menos aos 16 anos que eu percebi um fenômeno: até então, eu quase sempre achava as minhas músicas legais quando fazia e um lixo seis meses depois. As músicas não sobreviviam ao meu amadurecimento, que é tão acelerado nessa época. Mais ou menos por essa idade, lá pro fim do segundo grau, que as coisas começaram a mudar, e eu comecei a conseguir fazer uma música e incrivelmente continuar gostando dela.

Eram todas coisas muito simples. Das que eu lembro, a maioria era um festival de clichês dos estilos que eu cresci ouvindo. Mas o segundo grau foi a época em que eu conheci de Led Zeppelin a Dream Theater (idade em que eu comecei também a apresentar bandas pro meu irmão... teria sido DT a primeira?) e a minha paleta de referências foi aumentando. Junto, o meu conhecimento de teoria (muito desorganizadamente) e de inglês, devorando as GuitarWorld que o Jorge comprava.

Nessa época o Jorge tinha uma banda, acho que a primeira que eu lembro de ver ele ensaiando seguido e produzindo material desde os tempos com o Gustavo lá atrás. E assim como eu ouvia aquelas fitas de violão de voz com 9 anos, com uns 15 eu ouvia as gravações dos ensaios da For Business, a banda dele com o Skizo e o Feijão. Guitarra, bateria e baixo, agora assim, a coisa realmente soava como uma banda, não precisava imaginar. As músicas eram menos numerosas, mas ainda eram boas. Um som mais pesado, riffs memoráveis. "Love Don't Fall From Grace". "Skizomotion", a instrumental. Uma lástima eu não ter conseguido ver nenhum show deles, mas acho que não foram muitos, mesmo.

Com 16 anos eu tive minha primeira banda propriamente dita, com os colegas do terceiro ano do segundo grau -- Christian, Serginho, Israel e eu --, tocando covers pop toscas, baseados naquela ideia de que "essas são as músicas que a gente tem que tocar pra conseguir tocar nos lugares". Foi um bom aprendizado, especialmente as dicas do pai do Christian que me ensinava como fazer harmonia nos backing vocals -- esses dias lembrei da primeira vez que cantei harmonia em três partes, num ensaio dessa banda, e do arrepio que me deu.

No ano seguinte o Christian se mudou pra Brasília e ficamos nós três. A banda mudou de nome e começamos a tocar músicas próprias, ou seja, as que eu vinha fazendo. Foram quatro anos fazendo músicas e fazendo ensaios todo domingo. E nunca fizemos um show propriamente dito. Na época, achei a coisa toda uma grande decepção, mas esse sim foi o grande aprendizado da minha vida em fazer música: a rotina de fazer, tocar, testar, treinar, mudar, aprimorar... a banda nunca saiu da garagem porque o repertório ficava sempre evoluindo e nós nunca chegávamos nas tais "duas horas de material": as músicas mais velhas eram abandonadas à medida que ficavam muito fracas perto das músicas mais recentes que eram bem melhores. Fiquei lembrando agora das músicas dessa época que ficaram pra trás. "Don't Give Up", "Before It Falls"... é engraçado, todas têm alguma coisa ou outra a que eu ainda tenho apreço. São dessa época também "Yesterdays and Tomorrows", que na época eu considerava a minha "obra prima" (e que ainda é uma das minhas músicas preferidas, embora muito pouca gente tenha ouvido), "The Third Stream", "Crossfire".

Acabou a banda, como as bandas acabam, e no ano seguinte, 2001, eu fui tocar teclado numa banda de rock progressivo, a Sky Garden. Todo mundo na banda tocava melhor do que eu, o que era ótimo pra me impelir a melhorar. As covers ficavam muito boas mesmo (guitarras, baixos e baterias idênticos; os teclados eu fazia o meu melhor, o que nem sempre era suficiente; os vocais eram muito bons, mas é claro que nunca ficam "idênticos" como o pessoal das covers tanto almeja). O ambiente dos ensaios era bem criativo até, as jam sessions eram inigualáveis: sempre achei que eles relevavam a minha falta de técnica tocando porque eu compensava com a maluquice criativa na hora das jams. No papel a intenção era passarmos a fazer sons próprios. Eu tinha receio em trazer pra banda as músicas que eu já tinha prontas -- principalmente, por medo que eles achassem elas ridículas. O que aconteceu é que nós nunca conseguimos terminar uma música: muitas ideias dispersas, e um desentendimento constante sobre o rumo que a banda deveria tomar. E mais uma banda que se separou, e dessa vez realmente foram por causa das tais "diferenças criativas".

Depois dessa fase de muito aprendizado, muitos riffs e nenhuma música inteira, eu passei um bom tempo sem tocar com banda, e algo estranho aconteceu. Cada vez era mais difícil fazer uma música. Pra cada ideia musical que rolava, eu já ficava planejando e arquitetando todo um arranjo, pensando se conseguiria bolar o sem-número de partes que eu achava que a música deveria ter, e fazê-las todas coerentes entre si. Eu me sentia pressionado pra tentar superar, aos meus olhos, "Yesterdays and tomorrows". Eu sinceramente tinha medo de nunca mais conseguir fazer uma música tão boa quanto aquela, e nem nada melhor.

Eu lembro que eu tinha uma frase no piano -- uma sequência de acordes com uma melodia em cima -- que eu achava que seria digna de construir uma bela música em volta, que serviria como a pedra fundamental. Na época eu ainda estava tentando encontrar pessoas pra montar uma banda nova, junto com outros dois amigos que também saíram da Sky Garden e queriam fazer música comigo. Cheguei a gravar em 2002 um improviso de 2 minutos baseado nesse "tema mágico", que na época eu pensava em transformar em tema central de uma música de uns 20 minutos de duração. Eu mostrava isso como demo na hora de convidar as pessoas a tocar junto, mas nunca conseguimos juntar as pessoas pra fazer a banda. Eu tenho essa gravação até hoje, se chama "Color Bleed".

Depois do fracasso em montar a banda eu de novo me desiludi e fiquei um tempo parado sem nem procurar nada. O Jorge então me convidou pra banda nova que ele estava fazendo, Tilt. A banda de novo era com o Skizo e o Feijão, ou seja, seria como a For Business mais eu no teclado. Com quinze anos minha vontade não realizada era apenas ver eles tocando; oito anos depois, lá estava eu tocando junto.

Mas o som era bem diferente. As músicas eram novas. Meu irmão estava numa fase inspirada de novo, depois de muito tempo. Dessa vez eram em português; acho que num esforço pra tornar as músicas "mais acessíveis" (pra quem?). Nessa banda eu aprendi o prazer de tocar músicas próprias escritas por outra pessoa: é realmente diferente de tocar covers. Mesmo não tendo feito a música, eu sentia que estava contribuindo, com as minhas partes de teclado, e não havia a sensação chata de estar "imitando alguém". A banda durou um tempo, gravamos algumas das músicas (embora algumas das minhas preferidas, como "Entre o Bem e o Mal" e a instrumental "Game Over/Point of No Return" tenham ficado de fora... lástima). Chegamos a fazer uns shows, mas o que eu guardo da banda foram em primeiro lugar os ótimos ensaios, e depois a experiência de gravar e o aprendizado de mixar a demo eu mesmo.

De lá pra cá as pausas entre as bandas ficaram cada vez mais longas. Só fui ter uma banda de novo no Rio de Janeiro em 2006, onde de novo toquei covers e próprias de outras pessoas. Cheguei a tentar começar a fazer uma música pra contribuir pra banda, mas de novo, como tinha acontecido uma vez na Tilt, e tinha acontecido antes na Sky Garden, o processo de passar pra banda as minhas ideias sempre era altamente problemático -- de repente eu me pegava fazendo coisas altamente intrincadas que travavam o ensaio totalmente: eu complicava demais. Hoje eu olho e penso que era receio de chegar com algo muito simples e considerarem as minhas ideias bobas. Aí aparecia eu com os contrapontos com uma voz em 7/8 e a outra em 6/8...

Por essa época eu resolvi romper com a doutrina da quebradeira e comecei a deliberadamente simplificar as minhas músicas... até pra ver se eu conseguia voltar a terminar alguma! Resignado por não ter banda pra tocar, comecei a gravar umas demos em casa, montando arranjos gravando todas as partes com a guitarra e o teclado toscamente. Nessa época eu fiz "Ever Know" e "Matte Painting Skyline" (que nasceu pra ser uma música pesada pra banda no Rio e depois mudou totalmente de característica).

Ao mesmo tempo, eu continuava com algumas ideias pendentes. Vez que outra eu retornava àquela ideia "Color Bleed" e fazia mais algum pedacinho pra encaixar, como se estivesse construindo um quebra-cabeça ao longo dos anos. Mais antiga que essa ainda, era uma sequência de cinco notas em 7/8 e seis em 4/4 que eu vim carregando na cabeça desde os tempos da primeira banda de músicas próprias. Acho que foi no Rio, uns seis anos depois, que consegui terminar a música, que ganhou o nome de "Untrue".

Voltei pro Rio Grande do Sul, vieram novos projetos de banda, mas esses de covers. Excelentes momentos, mas que afastavam cada vez mais o meu "tocar música" daquilo que eu sempre tive como o meu pensamento central em relação à música, que era "fazer música". Ao mesmo tempo, eu vinha percebendo como pensar em fazer música era algo cada vez mais complicado pra mim -- parecia outra vida os tempos em que eu produzia despreocupadamente, jogando músicas fora a cada seis meses e fazendo outras até gostar. Agora as músicas haviam virado grandes catedrais que eu esculpia pedrinha por pedrinha e que nunca ficavam prontas, em busca de uma perfeição no meu próprio julgamento subjetivo. E pior ainda, isso tudo sendo um processo mental solitário -- ninguém nunca ouvia essas músicas inacabadas, que pra todos os efeitos eram ainda músicas imaginárias. Eu me sentia por vezes afundado em um processo criativo intenso, amadurecendo como músico e todo esse papo... mas nunca ninguém ouviu nem sequer qual era o tipo de música que eu tinha em mente.

Lá pelo meio de 2008, época do fim da Fink Ployd, eu pedi ao Coutinho a chance de gravar minhas músicas no estúdio dele. Não sabia direito nem como propor uma coisa dessas, mas estava disposto a fazer nos termos que ele achasse adequado. Pra minha surpresa, ele abraçou o projeto como forma de aprendizado mútuo, meu como compositor/arranjador/intérpete (todas essas palavras bonitas), e ele como engenheiro de som/produtor. Aos poucos, no ritmo do nosso tempo livre, as músicas foram nascendo. Fui chamando os amigos dos tempos de Fink Ployd e Flaming Pie para gravar partes. A qualidade das contribuições deles era tão grande que acabamos regravando muita coisa que eu havia inicialmente gravado eu mesmo. Um CD inteiro foi nascendo.

Com as gravações, por um tempo fazer música voltou a ser um processo dinâmico pra mim. Como o próprio nome diz, gravar tem a propriedade de te fazer tomar uma decisão que vai ficar ali "gravada", então muitos nós mal atados que as músicas tinham enquanto estavam só na minha cabeça tinham que ser resolvidos de uma vez. Cheguei a bolar a melodia do refrão da faixa 1 enquanto dirigia no caminho entre a casa e o estúdio, berrando feito um louco na BR, "'cause in every fraaame, it's always there!"

Mas já se vão quase dois anos. No final do ano passado tentei organizar uma banda junto com o pessoal mais envolvido no CD pra tocar as músicas, mas a demora da coisa como um todo desanimou todo mundo. O CD está quase pronto. 99% gravado -- estaria pronto se eu não estivesse sendo um chato e insistindo em gravar uma harmonia extra de backing vocals pro final de uma das músicas. Acho que ninguém aguenta mais o processo, as músicas já estão "velhas" e nem se terminou de mixar. (Se já parece estar assim pra eles, imagine pra mim, que convivo com essas músicas dentro da cabeça há vários anos mais.) A maioria da gurizada já partiu pra outra. Alguns de nós pensamos em tentar de novo fazer a tal coisa da banda pra tocar essas músicas, mas tá complicado.

Às vezes eu fico pensando no propósito disso tudo. É muito esforço, as músicas por vezes martelam a cabeça quase como uma paranóia. Nunca vê-las terminadas, nunca tocá-las, é uma frustração constante. Compor parece ser a cada dia mais complicado, agora que deixou de ser "fazer música" e virou "compor" e a gente se torna cada dia mais exigente com a própria produção. Ao mesmo tempo, eu mostrei pra algumas pessoas essas músicas gravadas, e a música preferida é frequentemente a única das realmente antigas que eu incluí, a que eu escrevi com 18 anos.

Estava hoje pensando nesse assunto. Pensando no meu irmão, em como aprendi a fazer música vendo ele fazer e como com o passar dos anos ele parecia ter períodos de "entressafra" cada vez mais longos, e como eu pensava que isso era um desperdício, que quando ele sentasse pra fazer músicas de novo ele faria músicas tão legais quando aquelas que ele fez lá atrás e que eu adorava. Lembrei do velho amigo dele, o Gustavo, a quem parecia se passar o mesmo. Lembrei de uma música fantástica que ele fez há muitos anos chamada "Night and Day", e me perguntei porque não haviam outras mais assim depois dessa. Fiquei me perguntando se com o passar dos anos a pessoa vai perdendo esse ímpeto e se estava pra chegar a minha vez.

Aí eu liguei o computador às 11 e meia da noite e tinha um email do Jorge com um mp3 anexado: "E aí guri... saca essa vinheta que eu espero que um dia vire um som..."

Um riff novo, e o som é animal. A música vive.

Incertezas, parte 1: tocar

Um dia tu é guri. Gosta de música, ouvir som te causa uma empolgação que poucas outras coisas são capazes de causar. Tu vê as bandas, tu tem ídolos que pra ti estão num pedestal. E o que eles têm de diferente de ti? Em primeiro lugar, eles fazem música. A música sai deles, assim como ela entra em ti. E então tu resolve que quer fazer música também. Fazer ela sair de ti.

Pega um instrumento, começa a tocar. Aos trancos e barrancos a coisa começa a sair. E quando sai, a sensação é muito boa. É a música ali, acontecendo. O grito que tu ouve, e que te empolga, é o teu grito. E não tem nada igual.

Até que um dia tu cria coragem e resolve tocar com mais gente. A primeira banda, ou arremedo de banda, como tipicamente é. Tu esbarrando nas tuas dificuldades, tropeçando nas dificuldades dos outros também (e como parecem difíceis as nossas partes e simples os erros dos outros! "Não, Fulano, é assim ó!")... E mesmo assim, é tão melhor que tocar sozinho, mas tão melhor, que tocar sozinho nunca mais vai ter a mesma graça.

E o tempo voa e tu não é mais guri. Hoje tu toca muito melhor do que tu tocava, mas bem pior do que um dia tu achou que ia chegar a conseguir tocar. Agora tu te sente mais amadurecido na tua relação com a música. Aquelas horas todas brigando pra melhorar a técnica hoje parecem nem fazer sentido mais, afinal, hoje tu valoriza o feeling. Ainda assim, quando pega o instrumento alguma coisa parece estar faltando. "Putz, to enferrujado", tu diz pra si mesmo e pros amigos que te veem tocando. No fundo, tu pensa quão melhor que isso dá pra chegar hoje em dia. "Hoje em dia" é o ponto-chave. Tu já chegou a tocar melhor que isso uma época, mas tu acha realmente que hoje vai conseguir botar no instrumento a dedicação que tu já chegou a botar anos atrás pra, bem, "desenferrujar"?

Aí tu te contenta que, bom, a técnica que tu tem até que dá pro gasto; agora é refinar os outros lados, trabalhar o lado criativo, abrir a cabeça pra outras sonoridades, aquele papo todo. Aprende a tocar uma que outra coisa de uns estilos que nos tempos de guri tu desdenhava, mas não chega a passar muito do básico, até porque não tem muita paciência pra ficar penando nesse tipo de som... mas já é suficiente pra mostrar o ecletismo pros outros amigos roqueiros (não que o objetivo fosse provar pra eles... sempre foi provar pra si mesmo.)

As bandas também mudaram. Lá se foram os ensaios que duram a tarde toda, cinco horas seguidas tocando sem camisa numa tarde de verão pra no final limpar o suor que escorre dos instrumentos. Agora ensaio tem que ser combinado um por um, pra ver se todo mundo pode, pra ver se tem hora de estúdio disponível, pra ver que músicas falta tirar. Duas horas contadinhas e no fim das contas essas são as duas únicas horas que tu chegou perto do instrumento a semana inteira. Tu já chega no ensaio com o "bah, não deu pra tirar" preparado na ponta da língua. Depois de um tempo, já nem tá mais tão sem jeito de dizer, porque nunca é o único. Aí acabam tirando as músicas ali mesmo no ensaio (feliz porque hoje consegue tirar muito mais rápido do que quando era guri) mas aquelas mais difíceis vão sempre ficando pra depois e no final nunca são tocadas.

O propósito da banda? Ah, é pra curtir. Afinal de contas, pra estressar já tem o trabalho. Covers que todos gostam e conhecem, mais fácil de tocar, não tem conflito. Volta e meia alguém consegue um show pra tocar. Os ensaios ficam mais pilhados. A data chega perto, convida os amigos, alguns até aparecem. O palco. Não importa onde, não importa como, é um palco. A acústica do lugar é um lixo. Tem tri pouca gente. Aquela parte da música que vocês erraram em todos os ensaios, pode crer: vão errar de novo quando ela chegar (mas agora já tão até acostumados pra contornar o erro e seguir em frente)... E mesmo assim, é tão melhor que tocar no ensaio, mas tão melhor, que ensaiar nunca mais vai ter a mesma graça.

Passa o show, a burocracia de sempre pra marcar o próximo ensaio. Banda de adultos, tudo é burocracia. Fulano vai viajar -- a trabalho -- então semana que vem não vai ter. Na outra sexta fica ruim. Quando o próximo ensaio finalmente acontece, tu já esqueceu de novo daquela parte que tu sempre confundia. O ensaio não tem a mesma pilha, mas outra hora pinta mais algum show. Mas os amigos da banda são os de sempre, as piadas, as saídas pra cerveja pós-ensaio, e no fim das contas aquele momento é sempre um dos highlights da tua semana.

E as bandas acabam. Por um motivo, por outro motivo, mas acabam. Fulano vai se mudar. Procurar outro cara vai ser muita função, e bah, quem mais ia cumprir o papel dele na banda? A banda nessa altura das coisas tá mais pra uma confraria de amigos. Tu tá mais preocupado com a química daquele grupo de amigos do quem com quem vai tocar tal instrumento. Ou então acaba porque Beltrano saiu da banda, anda ocupado, não tá mais afim, tá sem tempo. No frigir dos ovos, "tá sem tempo" e "não tá mais afim" são sempre sinônimos. O cara que te disse que tá sem tempo, depois tu vê ele dedicando o tempo livre pra alguma outra atividade que lhe dá mais prazer. Ah, mas é o comprometimento com a banda que ele não podia garantir. Pois é, em outros tempos isso parecia não ser tão complicado, dava-se um jeito.

Bandas acabam e outras aparecem. Cada vez mais o que te atrai são os "projetos" com pouco compromisso. Quanto menos comprometimento a coisa exigir, melhor. A regra é o "é pra curtir". Se reencontrar com o instrumento depois de um tempinho parado, bah, é muito bom. Aquele primeiro, segundo ensaio. Aí tu vê que aquela coisa do "desenferrujar" demora cada vez mais. Mas tudo bem, não é pra ser nada longo-prazo mesmo, valeu por tocar com os amigos de novo, de repente um showzinho, que até é legalzinho de novo, depois cada um pro seu lado. E tu fica bem contigo mesmo por um tempo, porque reafirmou pra si mesmo que "não tá parado".

Mas no todo isso não satisfaz. Chega em casa e olha pra aquele monte de instrumentos que tu acumulou ao longo dos anos. Parados. Tu te lembra de quando tu tinha só um caco de instrumento pra tocar, e tocava direto, sonhando com quando teria o equipamento que hoje tu tem e que ficam parados em casa. Esperando não sei o quê. Assim como as ideias. Aquelas que tu nunca pôs em prática. De quando tu comprou aquele instrumento e pensou que ia usar ele na tal banda ideal que nunca aconteceu, mas que, bem, um dia... afinal, ainda "tá nos planos". Tu pensa nas músicas que tu sempre quis tocar com banda e nunca deu. Tu pensa nas maluquices musicais que tu já inventou mas que ficaram "na manga" pra quando pintar a banda pra pôr em prática. A banda que está cada dia mais difícil de acontecer.

Porque hoje, agora, não dá pra se dedicar pra ter banda. A banda pode até existir, é tu, o Fulano e o Beltrano, mas se existe "tá de molho", o que dá no mesmo que não existir. Os outros amigos perguntam: "e aí, tá tocando?" e tu responde que sim mas que isso-ou-aquilo; se perguntam "tá tocando em algum lugar?" ou "quando é o próximo show?" aí tu sempre desconversa, "quando tiver eu aviso". E isso que essa não-banda, que quase nunca ensaia, nem é a tal da banda ideal pra quem tu guarda as tuas melhores ideias.

Aí tu começa a te dedicar a outras coisas, coisas até relacionadas com esse aprendizado todo de música que tu acumulou ao longo dos anos, mas que te deem uma sensação que vão pra algum lugar. Porque depois de uma certa idade tu nunca pensou a sério em ser músico profissional (e mesmo quando guri era pensamento mais de ficar viajando que qualquer coisa). Então afinal de contas, pra que ir atrás de fazer banda, se nunca dão em nada, mesmo? Aí tu te volta pra outras coisas onde tu vê o teu esforço criativo ser mais recompensado. Esse papo de ter banda tu deixou em segundo plano por enquanto. Claro, é bom tocar quando rola, ainda mais com os amigos, mas não mais que isso. O pensamento é que mais adiante tu vai ter mais tempo, e aí vai poder fazer e tocar o que quiser.

Mas assim como o tempo voou e tu não é mais guri, o tempo não para de voar, continua voando. E os dias, meses, semanas tão passando e logo são anos desde a última vez que tu te dedicou a um projeto de música, a uma banda, com todo o teu foco, com todo o teu coração. Tu não te dá conta do tempão que já faz desde a última vez que tu fez a música que te arrepia, que te empolga, sair de ti. E talvez tu não te dê conta que a banda daquele teu sonho nunca vai acontecer, que aquelas ideias nunca vão sair do papel. Que aquela energia adolescente que te impeliu a tocar se foi e que a música virou o hobby do adulto pra desestressar fora do expediente.

Não vai haver um dia específico em que tu vai "largar a música". Os instrumentos ainda vão estar por lá. Tu ainda vai brincar com eles vez que outra. Tu ainda vai ouvir os teus discos preferidos, conversar sobre som nos churrascos no fim de semana, sobre as velhas bandas preferidas, ou talvez até sobre alguma nova. Volta e meia tu até vai te juntar com uns amigos e tocar, às vezes com intervalos de anos, às vezes com uma boa frequência.

Tu ainda vai te sentir ligado com a música. Mas tu vai ver a piazada mais nova tocando e vai reconhecer neles uma coisa que tu já teve e que não tem mais. Tu vê que eles estão transbordando de ideias, de sentimentos, e que fazer música é pra eles, mais que uma vontade, uma necessidade de se comunicar. De se fazer ouvir, de gritar aquele grito. E que hoje quando tu pensa, os pensamentos não vêm em forma de música.

Os teus projetos são outros, mas a música não sumiu por completo, é um desejo distante que tá ali. Mais presente ainda é a ilusão de que a retomada pra música tá logo ali adiante. Aí uma hora tu até ensaia uma retomada: ensaio marcado pra semana que vem, "agora vai". Mas não vai ser semana que vem, nem na próxima, nem na outra, que tu vai reconciliar o teu espírito com a música. Que quando tu chegar em casa num dia qualquer no meio da semana, que quando tu botar a cabeça no travesseiro, o que vai ficar tocando na cabeça é a música pro próximo ensaio, como um dia já foi. Quando é que será que tu vai te pilhar de novo pra tocar como naqueles outros tempos? Pensar na ideia de voltar a tocar ainda te deixa empolgado, isso é a nostalgia falando. Mas na hora que tu pega o instrumento tu te dá conta que vocês dois estão se tornando dois estranhos. E logo tu larga o instrumento e deixa pra depois, de novo.




Apesar do uso da segunda pessoa, o texto é evidentemente auto-biográfico; um diálogo interno, talvez, que eu quis compartilhar com os amigos. Não tenho convicções sobre as coisas que estão escritas nele, assim como não tenho convicções sobre nada que tange a arte hoje em dia. Mas achei que valia a pena externar.