quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Incertezas, parte 1: tocar

Um dia tu é guri. Gosta de música, ouvir som te causa uma empolgação que poucas outras coisas são capazes de causar. Tu vê as bandas, tu tem ídolos que pra ti estão num pedestal. E o que eles têm de diferente de ti? Em primeiro lugar, eles fazem música. A música sai deles, assim como ela entra em ti. E então tu resolve que quer fazer música também. Fazer ela sair de ti.

Pega um instrumento, começa a tocar. Aos trancos e barrancos a coisa começa a sair. E quando sai, a sensação é muito boa. É a música ali, acontecendo. O grito que tu ouve, e que te empolga, é o teu grito. E não tem nada igual.

Até que um dia tu cria coragem e resolve tocar com mais gente. A primeira banda, ou arremedo de banda, como tipicamente é. Tu esbarrando nas tuas dificuldades, tropeçando nas dificuldades dos outros também (e como parecem difíceis as nossas partes e simples os erros dos outros! "Não, Fulano, é assim ó!")... E mesmo assim, é tão melhor que tocar sozinho, mas tão melhor, que tocar sozinho nunca mais vai ter a mesma graça.

E o tempo voa e tu não é mais guri. Hoje tu toca muito melhor do que tu tocava, mas bem pior do que um dia tu achou que ia chegar a conseguir tocar. Agora tu te sente mais amadurecido na tua relação com a música. Aquelas horas todas brigando pra melhorar a técnica hoje parecem nem fazer sentido mais, afinal, hoje tu valoriza o feeling. Ainda assim, quando pega o instrumento alguma coisa parece estar faltando. "Putz, to enferrujado", tu diz pra si mesmo e pros amigos que te veem tocando. No fundo, tu pensa quão melhor que isso dá pra chegar hoje em dia. "Hoje em dia" é o ponto-chave. Tu já chegou a tocar melhor que isso uma época, mas tu acha realmente que hoje vai conseguir botar no instrumento a dedicação que tu já chegou a botar anos atrás pra, bem, "desenferrujar"?

Aí tu te contenta que, bom, a técnica que tu tem até que dá pro gasto; agora é refinar os outros lados, trabalhar o lado criativo, abrir a cabeça pra outras sonoridades, aquele papo todo. Aprende a tocar uma que outra coisa de uns estilos que nos tempos de guri tu desdenhava, mas não chega a passar muito do básico, até porque não tem muita paciência pra ficar penando nesse tipo de som... mas já é suficiente pra mostrar o ecletismo pros outros amigos roqueiros (não que o objetivo fosse provar pra eles... sempre foi provar pra si mesmo.)

As bandas também mudaram. Lá se foram os ensaios que duram a tarde toda, cinco horas seguidas tocando sem camisa numa tarde de verão pra no final limpar o suor que escorre dos instrumentos. Agora ensaio tem que ser combinado um por um, pra ver se todo mundo pode, pra ver se tem hora de estúdio disponível, pra ver que músicas falta tirar. Duas horas contadinhas e no fim das contas essas são as duas únicas horas que tu chegou perto do instrumento a semana inteira. Tu já chega no ensaio com o "bah, não deu pra tirar" preparado na ponta da língua. Depois de um tempo, já nem tá mais tão sem jeito de dizer, porque nunca é o único. Aí acabam tirando as músicas ali mesmo no ensaio (feliz porque hoje consegue tirar muito mais rápido do que quando era guri) mas aquelas mais difíceis vão sempre ficando pra depois e no final nunca são tocadas.

O propósito da banda? Ah, é pra curtir. Afinal de contas, pra estressar já tem o trabalho. Covers que todos gostam e conhecem, mais fácil de tocar, não tem conflito. Volta e meia alguém consegue um show pra tocar. Os ensaios ficam mais pilhados. A data chega perto, convida os amigos, alguns até aparecem. O palco. Não importa onde, não importa como, é um palco. A acústica do lugar é um lixo. Tem tri pouca gente. Aquela parte da música que vocês erraram em todos os ensaios, pode crer: vão errar de novo quando ela chegar (mas agora já tão até acostumados pra contornar o erro e seguir em frente)... E mesmo assim, é tão melhor que tocar no ensaio, mas tão melhor, que ensaiar nunca mais vai ter a mesma graça.

Passa o show, a burocracia de sempre pra marcar o próximo ensaio. Banda de adultos, tudo é burocracia. Fulano vai viajar -- a trabalho -- então semana que vem não vai ter. Na outra sexta fica ruim. Quando o próximo ensaio finalmente acontece, tu já esqueceu de novo daquela parte que tu sempre confundia. O ensaio não tem a mesma pilha, mas outra hora pinta mais algum show. Mas os amigos da banda são os de sempre, as piadas, as saídas pra cerveja pós-ensaio, e no fim das contas aquele momento é sempre um dos highlights da tua semana.

E as bandas acabam. Por um motivo, por outro motivo, mas acabam. Fulano vai se mudar. Procurar outro cara vai ser muita função, e bah, quem mais ia cumprir o papel dele na banda? A banda nessa altura das coisas tá mais pra uma confraria de amigos. Tu tá mais preocupado com a química daquele grupo de amigos do quem com quem vai tocar tal instrumento. Ou então acaba porque Beltrano saiu da banda, anda ocupado, não tá mais afim, tá sem tempo. No frigir dos ovos, "tá sem tempo" e "não tá mais afim" são sempre sinônimos. O cara que te disse que tá sem tempo, depois tu vê ele dedicando o tempo livre pra alguma outra atividade que lhe dá mais prazer. Ah, mas é o comprometimento com a banda que ele não podia garantir. Pois é, em outros tempos isso parecia não ser tão complicado, dava-se um jeito.

Bandas acabam e outras aparecem. Cada vez mais o que te atrai são os "projetos" com pouco compromisso. Quanto menos comprometimento a coisa exigir, melhor. A regra é o "é pra curtir". Se reencontrar com o instrumento depois de um tempinho parado, bah, é muito bom. Aquele primeiro, segundo ensaio. Aí tu vê que aquela coisa do "desenferrujar" demora cada vez mais. Mas tudo bem, não é pra ser nada longo-prazo mesmo, valeu por tocar com os amigos de novo, de repente um showzinho, que até é legalzinho de novo, depois cada um pro seu lado. E tu fica bem contigo mesmo por um tempo, porque reafirmou pra si mesmo que "não tá parado".

Mas no todo isso não satisfaz. Chega em casa e olha pra aquele monte de instrumentos que tu acumulou ao longo dos anos. Parados. Tu te lembra de quando tu tinha só um caco de instrumento pra tocar, e tocava direto, sonhando com quando teria o equipamento que hoje tu tem e que ficam parados em casa. Esperando não sei o quê. Assim como as ideias. Aquelas que tu nunca pôs em prática. De quando tu comprou aquele instrumento e pensou que ia usar ele na tal banda ideal que nunca aconteceu, mas que, bem, um dia... afinal, ainda "tá nos planos". Tu pensa nas músicas que tu sempre quis tocar com banda e nunca deu. Tu pensa nas maluquices musicais que tu já inventou mas que ficaram "na manga" pra quando pintar a banda pra pôr em prática. A banda que está cada dia mais difícil de acontecer.

Porque hoje, agora, não dá pra se dedicar pra ter banda. A banda pode até existir, é tu, o Fulano e o Beltrano, mas se existe "tá de molho", o que dá no mesmo que não existir. Os outros amigos perguntam: "e aí, tá tocando?" e tu responde que sim mas que isso-ou-aquilo; se perguntam "tá tocando em algum lugar?" ou "quando é o próximo show?" aí tu sempre desconversa, "quando tiver eu aviso". E isso que essa não-banda, que quase nunca ensaia, nem é a tal da banda ideal pra quem tu guarda as tuas melhores ideias.

Aí tu começa a te dedicar a outras coisas, coisas até relacionadas com esse aprendizado todo de música que tu acumulou ao longo dos anos, mas que te deem uma sensação que vão pra algum lugar. Porque depois de uma certa idade tu nunca pensou a sério em ser músico profissional (e mesmo quando guri era pensamento mais de ficar viajando que qualquer coisa). Então afinal de contas, pra que ir atrás de fazer banda, se nunca dão em nada, mesmo? Aí tu te volta pra outras coisas onde tu vê o teu esforço criativo ser mais recompensado. Esse papo de ter banda tu deixou em segundo plano por enquanto. Claro, é bom tocar quando rola, ainda mais com os amigos, mas não mais que isso. O pensamento é que mais adiante tu vai ter mais tempo, e aí vai poder fazer e tocar o que quiser.

Mas assim como o tempo voou e tu não é mais guri, o tempo não para de voar, continua voando. E os dias, meses, semanas tão passando e logo são anos desde a última vez que tu te dedicou a um projeto de música, a uma banda, com todo o teu foco, com todo o teu coração. Tu não te dá conta do tempão que já faz desde a última vez que tu fez a música que te arrepia, que te empolga, sair de ti. E talvez tu não te dê conta que a banda daquele teu sonho nunca vai acontecer, que aquelas ideias nunca vão sair do papel. Que aquela energia adolescente que te impeliu a tocar se foi e que a música virou o hobby do adulto pra desestressar fora do expediente.

Não vai haver um dia específico em que tu vai "largar a música". Os instrumentos ainda vão estar por lá. Tu ainda vai brincar com eles vez que outra. Tu ainda vai ouvir os teus discos preferidos, conversar sobre som nos churrascos no fim de semana, sobre as velhas bandas preferidas, ou talvez até sobre alguma nova. Volta e meia tu até vai te juntar com uns amigos e tocar, às vezes com intervalos de anos, às vezes com uma boa frequência.

Tu ainda vai te sentir ligado com a música. Mas tu vai ver a piazada mais nova tocando e vai reconhecer neles uma coisa que tu já teve e que não tem mais. Tu vê que eles estão transbordando de ideias, de sentimentos, e que fazer música é pra eles, mais que uma vontade, uma necessidade de se comunicar. De se fazer ouvir, de gritar aquele grito. E que hoje quando tu pensa, os pensamentos não vêm em forma de música.

Os teus projetos são outros, mas a música não sumiu por completo, é um desejo distante que tá ali. Mais presente ainda é a ilusão de que a retomada pra música tá logo ali adiante. Aí uma hora tu até ensaia uma retomada: ensaio marcado pra semana que vem, "agora vai". Mas não vai ser semana que vem, nem na próxima, nem na outra, que tu vai reconciliar o teu espírito com a música. Que quando tu chegar em casa num dia qualquer no meio da semana, que quando tu botar a cabeça no travesseiro, o que vai ficar tocando na cabeça é a música pro próximo ensaio, como um dia já foi. Quando é que será que tu vai te pilhar de novo pra tocar como naqueles outros tempos? Pensar na ideia de voltar a tocar ainda te deixa empolgado, isso é a nostalgia falando. Mas na hora que tu pega o instrumento tu te dá conta que vocês dois estão se tornando dois estranhos. E logo tu larga o instrumento e deixa pra depois, de novo.




Apesar do uso da segunda pessoa, o texto é evidentemente auto-biográfico; um diálogo interno, talvez, que eu quis compartilhar com os amigos. Não tenho convicções sobre as coisas que estão escritas nele, assim como não tenho convicções sobre nada que tange a arte hoje em dia. Mas achei que valia a pena externar.

Um comentário:

  1. Eu tive uma experiência musical diferente de muita gente. Por uma série de motivos, eu hoje me sinto muito mais pilhado em tocar do que quando comecei. Não consigo comparar o que eu era quando guri com o que sou hoje.

    E como adultos, todos temos coisas que nos impedem de tocar (mundo do trampo, família, etc.), mas eu prefiro considerar isso como parte do cenário, desligar o fodômetro e me concentrar nas coisas que eu posso e devo fazer musicalmente.

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