Acabei de voltar da terceira noite do seminário "La machinerie de l'art", onde assisti a uma palestra do Juremir Machado da Silva, na qual se discutiu entre outras coisas o pós-modernismo e as suas manifestações. Foi uma palestra bem irônica e interessante, onde ele arriscou umas definições bem boas -- uma delas, em que no pós-modernismo "tudo é relativizado" (e sim, ele mesmo apontou o paradoxo dessa definição). Mais adiante ele citou Heidegger e "A Questão da Técnica", em que ele diz que "a técnica não é igual à essência da técnica", que está além da técnica.
Esse além, esse "meta", me fez pensar em "O que é a filosofia?" de Deleuze e Guattari. Ao longo do livro eles discutem arte, filosofia e ciência, traçando um paralelo entre elas ao buscar as suas essências. Eles chegam ao que eles chamam de plano de imanência, onde estaria uma pré-arte, uma pré-filosofia e uma pré-ciência. Eles se debruçam mais sobre essa noção de pré-filosofia, claro, mas pra mim o paralelo com a pré-ciência era evidente.
A ciência existe numa busca de respostas e obviamente procura os próprios fundamentos. O mais primordial onde a ciência consegue chegar sobre a sua natureza é na sua axiomatização: ao atingir os axiomas chegamos na base da ciência. Mas esses axiomas estão sustentados em algo que os fazem serem considerados por nós válidos, aceitos como tal. Aí está a pré-ciência.
O que me intriga é que essa pré-ciência parece ser comum a todos. Simplificando um pouco, todos os povos da humanidade chegaram independentemente no "1+1=2", salvo meras variações de representação1. Ao concordarem com esse conjunto de axiomas, todos esses povos estão implicitamente concordando com uma noção única de "Ciência com C maiúsculo". Assim, todos os cientistas estão fazendo uma mesma ciência, buscando alcançar essa Ciência arquetípica ao tentar produzir relações que ressoem harmoniosamente com esses axiomas fundamentais que, por mais abstratos e arbitrários que sejam (afinal, a noção de "um" e de "soma" não são verdades absolutas, mas abstrações humanas construídas) são tidos por nós como válidos por ressoarem com a realidade.
Perguntei ao Juremir se, uma vez que a ciência se fundamenta numa pré-ciência que por sua vez é constituída de modo que temos uma referência comum (e portanto uma só Ciência), e a arte é fundamentada numa pré-arte que remete a esse mesmo "plano de imanência", então a pré-arte não seria também uma manifestação de uma Arte arquetípica comum a todos, indo contra a noção de que "tudo é relativizado" pregada pelo pós-modernismo?
Infelizmente ele não entendeu minha pergunta. A resposta dele foi de que discordava com a minha premissa de "uma só ciência". Ele disse que vê muitas ciências diferentes sendo realizadas, que umas são aceitas e outras não e que muitas discordam entre si pois com o passar do tempo umas teorias científicas refutam as outras.
Talvez eu tenha me expressado mal (e o mediador mandando eu fazer a pergunta mais rápido também não ajudou muito), mas a parte que ele não pegou da pergunta foi que o meu foco não era nas ciências aplicadas, nem no fazer da ciência e nem nas teorias científicas, mas sim na axiomatização da ciência (termo que eu citei rapidamente durante a pergunta, sem toda a explicação de um parágrafo que eu pude escrever aqui). Sim, a relatividade não confere com Newton e a teoria quântica não confere com a relatividade. No que isso acontece, o peso de "verdade científica" da teoria anterior diminui, o seu status de assim-é-o-mundo, mas não o seu valor como fazer científico onde o fazer científico é a busca por essa Ciência comum fundamentada nos axiomas que nós humanos inventamos2.
Para não perdermos o fio da meada: essa pré-ciência no qual a ciência se fundamenta não são os axiomas da ciência. Mas algo que vem antes, aquela coisa que nos faz escolher alguns axiomas e não outros. Não estaria a arte galgada numa pré-arte que também nos é comum? É a pergunta para a qual não tenho resposta.
É mais difícil tentar visualizar essa "pré-arte" (origem da arte no plano de imanência) uma vez que na arte não há uma "ordem" que nos leve facilmente ao limiar, ao contrário da ciência, que é toda "quadradinha" e tem nos seus axiomas o seu limiar; e da filosofia, onde podemos ir até a metafísica e questionar a noção do que é "ser". Assim, enquanto os cientistas normalmente olham para o todo e veem "uma só Ciência" (não raro enganados achando que estão vendo o Mundo), não me parece familiar aos artistas a noção de ver "uma só Arte", ainda mais porque para cada artista falamos sempre na "sua arte".
Ainda assim, quando se pergunta, como se tem perguntado tão frequentemente nessa série de seminários, "o que é arte?", não estamos falando de uma arte, nem que seja "a" arte enquanto um conceito geral? E se essa é uma pergunta válida, e exista um conceito geral do que é arte3, não haveria em todas as manifestações artísticas atributos seus que remetem aos atributos desse conceito geral, por mais indiretamente que seja?
Se nas manifestações científicas e filosóficas o caminho até as noções fundamentais é normalmente longo, não esperaria que na arte fosse diferente. Mas se eu vejo na ciência e na filosofia, por todas as divergências que as correntes internas de cada uma têm entre si, um ímpeto comum que agrega todas elas como um todo, seria tão estranho de pensar que seria o mesmo na arte? Ela é tão fundamentalmente diferente? Pra mim não há como não pensar em Hofstadter nesse ponto e dizer "não, ela não é".
Como na ciência os povos chegaram independentemente aos mesmos axiomas guiados por ímpetos comuns, e vários acabaram inventando o "1+1=2" e um bom tempo depois a noção de "zero" e assim por diante, esses mesmos povos atingiram muitas vezes resultados comuns na arte. O desenho, a noção de arte figurativa, a noção posterior de arte abstrata, a escala pentatônica na música... claro que estes estão muito longe de serem "axiomas da arte", mas ainda assim não apontam em uma direção comum? E se há uma direção comum, então a noção pós-moderna do "tudo é relativizado" não seria um erro?
Perguntas, perguntas, perguntas...
1 - A noção de soma pode ser construída a partir de axiomas mais fundamentais, como demonstram os Axiomas de Peano, mas a soma de naturais basta como exemplo de noção científica basilar e incontestada. (voltar)
2 - Há quem simplifique e diga que a ciência busca a "Verdade com V maiúsculo", mas aí caímos na discussão do que é verdade: na filosofia, atividade que no mesmo livro Deleuze chamou de "criação de conceitos". O fazer científico se calca nos seus próprios axiomas e deles não passa. Simplificando novamente: se eu tento modelar um processo físico com uma equação e ela não bate com os experimentos empíricos, eu concluo que ou a equação não é um bom modelo, ou ela é um bom modelo e eu errei o cálculo. Não se questiona que a noção de "igualdade" possa estar errada. (voltar)
3 - Talvez o conceito geral de arte não "caiba na linguagem" -- para parafrasear o próprio Juremir -- e por isso estaríamos condenados a falar e falar sobre ele sem chegar numa conclusão satisfatória. (voltar)
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quarta-feira, 12 de agosto de 2009
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