terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Muse e os perigos do "nano-plágio"

Quando a gente está escrevendo uma música e vem à mente uma melodia bacana, uma preocupação constante é "eu inventei isso, ou estou lembrando de alguma música?".

Na minha experiência, eu percebi que é muito comum, especialmente ao escrevermos melodias de voz para uma letra, acabarmos lendo uma frase da letra cantando nela um trechinho de melodia de alguma música que conhecemos que seja no mesmo tom e/ou no mesmo clima da música que estamos fazendo, e cuja métrica encaixe. É como se o cérebro inconscientemente quissese ajudar: "aqui está uma melodia de cinco sílabas em sol maior em mais ou menos 130 bpm". Isso é mais comum ainda reaproveitando esses trechinhos das nossas próprias músicas anteriores, talvez porque sejam em tons e estilos em que estamos acostumados a cantar... com o tempo, essas repetições entre músicas acabam virando os nossos "tropes" melódicos, formando o nosso estilo identificável, até. Mas vez que outra, alguma frase melódica de alguém escapa e entra na nossa música.

Na maioria das vezes, a melodia é tão "óbvia" que ela "não tem dono": milhares de músicas vão ter uma mesma sequência de cinco notas ascendentes, por exemplo. Outras tantas vezes, é simplesmente uma coincidência, pois afinal, existe uma quantidade limitada de maneiras de alinhar as notas de uma escala. Mas às vezes alguma coisa faz a gente perceber que o autor "puxou sem querer" uma melodia de algum lugar. Tipicamente, é quando o contexto da música entrega.

Ouvindo o excelente "The 2nd Law", do Muse, teve três momentos em que a minha experiência de ouvir o disco foi travada por um súbito "eu conheço isso". Nada que eu considere um plágio no sentido de uma falta de originalidade ou muito menos de má-intenção, mas o que eu chamaria de "nano-plágios" (sim, menores que "micro-plágios") onde a coincidência parece ser coincidente demais pra não ter havido alguma influência.

1) Panic Station

A melodia do verso encaixa e é no mesmo tom de Suicide Blonde do INXS:

"You won't get much closer to sacrifice it all / You won't get to taste it with your face against the wall" → "You want to make her, Suicide Blonde / Love devastation, Suicide Blonde"

Por que eu notei: de maneira geral, estilisticamente de maneira geral me remete a INXS, com os synth-brass anos 80 nos refrões e, em especial, a intro com a caixa marcada e os acordes agudos (que no caso do Muse são tocados no baixo) me remetem à intro de "New Sensation".

2) Panic Station, de novo

No meio da música tem uma linha de melodia de Thriller do Michael Jackson. Só não é mais idêntico em função do tom das músicas: no Muse é em Em, em Thriller é em C#m, mas harmonicamente as melodias têm a mesma função.

"And this chaos, it defies imagination" → "And hope that this is just imagination" (2:14)

Por que eu notei: Talvez passasse desapercebido se não terminasse com a mesma rima na letra. Eu acho que essa similaridade faz mais pessoas inconscientemente associarem essa música ao Michael Jackson também: eu li em duas resenhas diferentes comparações entre essa música e Michael Jackson, embora pra mim, fora a vibe geral anos 80 dela, ela não me remeta a MJ.

3) Explorers

A seção de "piano, voz e cozinha (baixo+bateria)" começando em 3:11 me deu uma sensação estranha quando ouvi. Até que eu parei pra pensar:

"O que é, o que é: rock moderno baladinha feito com piano, voz e cozinha?"
Aí ficou fácil. Quando caiu a ficha que aquela parte parecia muito com Keane, e como eu não conheço quase nada de Keane, assumi que deveria ser algo de alguma das músicas mais conhecidas deles. Dito e feito: a seção é no mesmo tempo (quase o mesmo bpm), mesma levada de piano, e mesmo tom de "Everybody's Changing". E na frase chave da saída da seção, as duas notas acentuadas, a do início e do fim, são iguais à frase chave da saída do refrão do Keane:

"Can you freeee me / free me from this woooorld" (3:30) → "Cause everybody's changing / and I don't know whyyyy"

E daí?

Bom, não quero despertar com isso a fúria dos Musers. Eu poderia citar outros exemplos: tem uma famosa do Dream Theater no "Scenes From a Memory" com uma melodia do Metallica. Aliás, o DT do Scenes from a Memory em diante é campeão em "soar como outras bandas", o que é constante alvo de críticas, mas não é disso exatamente que estou falando aqui.

O que eu acho interessante notar é que eu acho que esses "nano-plágios" ocorrem com maior frequência quando a gente, enquanto compositor, se encaixa demais dentro de um estilo para uma determinada música ou seção. O exemplo de Explorers pra mim é clássico: eles estavam tocando tal-e-qual Keane, e eis que as referências melódicas vieram junto. Não é coincidência que na música do Dream Theater a melodia idêntica à do Metallica tenha aparecido justamente na seção mais heavy metal da música. Se as mesma frase de 7 ou 8 notas do Metallica tivesse aparecido em uma seção piano-e-voz do Dream Theater aí sim seria mera coincidência. Da mesma forma, em Panic Station o Muse se propôs a fazer um pastiche dos anos 80, e aí frases melódicas do INXS e Michael Jackson acabaram aparecendo.

Quando a gente está escrevendo algo que pretende ser "original" (nesse momento é claro que alguém vai aparecer e dizer que "nada é 100% original", mas eu me refiro aqui a uma expressão de um trabalho artístico autoral que pretende ser inédito, diferente de por exemplo um jingle feito por encomenda cujo cliente pede que seja "parecido com a música X"), uma maneira de tentar fugir dos riscos do "nano-plágio" é explicitamente evitar de se encaixar plenamente um uma determinada referência de estilo.

O Dream Theater, por exemplo, é frequentemente culpado disso, no momento em que eles explicitamente organizam os seus arranjos com coisas como "seção Rush" e assim por diante (palavras deles).

Obviamente, chamar uma parte de "seção Rush" ajuda muito a comunicação entre as pessoas, porque muitas vezes quando estamos escrevendo uma parte de uma música, a gente tem uma referência geral de que o que estamos fazendo naquela parte é pra ficar meio parecido com X ou Y. Porém, quando estávamos gravando o Color Bleed, por exemplo, eu sempre evitava de falar quais eram as referências das partes (o que dificultava o trabalho e enchia muito o saco dos guris). Eu conscientemente queria que eles trabalhassem as partes "sem referências" pra que eles levassem os arranjos e melodias pra outros lados. Quando todos os vetores da música apontam na mesma direção, é meio caminho andado para algum "nano-plágio" escapar, ou no mínimo, para a música ficar parecendo uma "imitação de X ou Y".

Mais recentemente, há uns tempos atrás, estávamos passando uma música num ensaio que tinha uma levada de piano meio nostálgica, à la Beatles. O Gustavo, baterista, ouviu e disse "ah, pra essa música fica legal fazer uma levada meio Ringo." É claro que uma bateria estilo Ringo cai bem com um piano estilo Beatles, mas é por isso mesmo que a gente não deve fazê-lo.


Às vezes eu fico com a impressão de que falta às bandas um ouvido de fora que aponte a elas quando elas caem nessa armadilha estilística. Coincidentemente, tanto os discos do Muse do "The Resistance" (que teve críticas de excesso de Queen-ismos) em diante como os discos do Dream Theater a partir do "Scenes from a Memory" são produzidos pelas próprias bandas. Eu sou um ferrenho defensor da liberdade artística das bandas para compor e arranjar, mas talvez esteja faltando alguém no estúdio pra dizer "pô, isso aí está parecido demais com..." Até porque, talvez esteja parecido demais mesmo.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Os 50 anos do primeiro lançamento dos Beatles


Depois de longas horas de gravação e muita confusão digna de uma Sessão da Tarde, finalmente no dia 5 de Outubro de 1962 foi lançado o single Love Me Do, com P.S. I Love You no lado B, que sem contar com a  gravação de "My Bonnie" com Tony Sheridan, foi a estreia comercial dos Beatles.



Pra continuar a confusão, por algum motivo que todos desconhecem, a versão do Ringo do dia 4 de setembro acabou sendo lançada nas primeiras prensagens do single, “erro” que apenas foi corrigido em setembro de 1963. Conclui Mark Lewisohn: “Isso prova que a versão de 11 de setembro [com Andy White na bateria] não foi uma grande evolução”.



Decidiram então manter apenas uma versão oficial, a do dia 11 de setembro com o baterista Andy White, e a master com o Ringo foi destruída. A versão com Ringo que a gente ouve no Past Masters (observada como “Original Single Version”) foi restaurada a partir de um disco de um colecionador, considerada a melhor fonte disponível.

O single chegou em 17o. lugar nas paradas britânicas - provavelmente devido ao visionário Brian Epstein ter comprado milhares de cópias para a sua popular loja NEMS - chegando ao primeiro lugar nas paradas americanas quando foi lançado apenas um ano e meio depois, em abril de 1964, na carona da Beatlemania.




terça-feira, 11 de setembro de 2012

O triste 11 de setembro de Ringo Starr

90 dias após a primeira gravação dos Beatles nos estúdios Abbey Road com Pete Best, eles retornam com um novo baterista, que se tornou oficialmente um beatle no dia 18 de agosto anterior.

No dia 4 de setembro de 1962, foram gravadas a versão de Love Me Do que aparece no álbum Past MastersHow Do You Do It (que aparece no Anthology 1), empurrada goela abaixo pelo produtor George Martin - os Beatles desde o início queriam apenas gravar músicas próprias.

Foto foi tirada no dia 4 de setembro pelo eslovaco Dezo Hoffmann, cuja simpatia estabeleceu um longo relacionamento com a banda.

Mas George Martin não estava satisfeito com a bateria do Ringo. Há 50 anos atrás, no dia 11 de setembro de 1962, o entusiasmo do batera desabou como as torres gêmeas ao chegar no estúdio e ver um baterista profissional, chamado Andy White. Os Beatles gravaram três canções neste dia: a versão de Love Me Do que aparece no álbum Please Please Me; P.S. I Love You, do mesmo álbum; e Please Please Me, que aparece no Anthology 1.

Love Me Do e P.S. I Love You foram escolhidas para ser o primeiro single da banda, lado A e B respectivamente. O Ringo apenas acompanhou as duas primeiras músicas, tocando na primeira um tambourine (instrumento bem similar ao nosso pandeiro) e maracas na segunda. É aí que dá pra facilmente distinguir as duas versões de Love Me Do, pois a primeira não tem o tambourine. 

Quanto a Please Please Me, tenho uma dúvida sobre quem tocou bateria. Primeiro porque esta gravação havia sido perdida e encontrada apenas em 1994. Segundo porque apesar do Anthology creditar White, o engenheiro de som Geoff Emerick informa que lembra ter visto o Ringo gravar com a bateria, após White ter ido embora (ele também lembra de ver o roadie Mal Evans montando a bateria pro Ringo). Terceiro: consta que o George Martin "sugere após o final da sessão que a música seja tocada num tempo mais rápido". Ora, como a gravação encontrada é praticamente na mesma velocidade da gravação oficial, gravada posteriormente, pode ser que eles tenham tentado uma última vez com o Ringo após White vazar.

A essa altura do campeonato, nem o Ringo deve lembrar se foi ele que tocou ou não. Os Beatles voltariam a gravar Please Please Me (com Ringo, com certeza) no dia 26 de novembro.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

...e os Beatles conheceram Abbey Road

6 de junho de 1962: há 50 anos John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Pete Best pisavam pela primeira vez nos estúdios Abbey Road.

Voltando mais alguns meses no tempo: os quatro fizeram uma enérgica audição nos estúdios da Decca no primeiro dia daquele ano. O teste foi reprovado, sendo motivo de piada na EMI logo que o sucesso dos Fab4 alavancou. Norman Smith, engenheiro de som do Abbey Road, relata no livro “The Beatles Recording Sessions”, de Mark Lewisohn:

Smith recalls a rather cruel joke played on EMI's great
rivals, Decca. "We sent a tape of `Please Please Me'
under plain wrapper to Dick Rowe, the man who turned
down the Beatles. We hoped he would think it was from
a struggling artist looking for a break, and that maybe
he would turn them down a second time! I honestly can't
remember what, if anything, he replied."

Mas é claro que naquele 6 de junho eles estavam com a autoestima abalada. Porém, Brian Epstein tinha muita confiança nos garotos e conseguiu o teste na divisão Parlophone da EMI, administrado por George Martin. Este selo era focado em discos de comédia, principalmente pelas gravações de Peter Sellers, a eterna “Pantera Cor-De-Rosa” (e por falar nele, acho hilária a sua versão de “A Hard Day’s Night” imitandoLaurence Olivier interpretando Richard III, e bem estranho um encontro dele com os Beatles, que parece ter sido durante as gravações do Let it Be).

Mas voltemos ao grande dia que completa 50 anos! George Martin, no espírito de “não tenho nada a perder” decidiu recebeu os garotos no estúdio. Várias músicas foram tocadas, mas apenas quatro gravadas. Destas, apenas duas sobreviveram ao tempo: Besame Mucho e Love Me Do. Sendo que a última foi encontrada pela esposa de Martin no porão da casa deles em um acetato, muitos anos depois. Ainda que mais lenta, é um pouco mais “gingada” do que a versão que Ringo Starr gravou alguns meses depois (como eu não gosto muito dessa música, não me faz muita diferença).

E Martin lembra bem de não ter ficado satisfeito com a bateria de Best (ele também não ficou satisfeito com a do Ringo depois, mas isso é outra história). Os Beatles também já estavam querendo trocar de batera. Algumas pessoas relatam a "injustiça" com a substituição pelo Ringo – e Paul admite que faltou tato ao tratar deste assunto.


Mas a troca foi justa. E quem já tocou em bandas pode concordar comigo: o Ringo era muito mais sintonizado com os outros três, e não me refiro só musicalmente. Alguém consegue imaginar uma entrevista dessas com o Pete Best? Eu imagino ele quieto e com cara de cú o tempo inteiro. Apenas com Ringo a banda teria todos os integrantes carismáticos.

"Ringo is Ringo, that's all there is to it. And he's every bloody bit as warm, unassuming, funny, and kind as he seems. He was quite simply the heart of the Beatles."
- John Lennon.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Sobre Legendas e Dublagens - 2

Tempos atrás, o Hisham publicou este texto, debatendo sobre benefícios e malefícios dos filmes serem legendados ou dublados -- motivado por sua vez por este texto que eu escrevi em outro blog. Quando li o post, vários dias depois, a correria (e uma certa falta de paciência) me impediram de poder responder ou eventualmente rever (ou esclarecer) minha visão.

No entanto, um fato curioso me chamou a atenção essa semana e me fez lembrar do texto, por conta do que eu achei interessante retomar o debate.

O fato é o seguinte: na atual programação dos cinemas de Canoas, São Leopoldo e Novo Hamburgo, temos a seguinte situação:

Novo Hamburgo: Seis filmes estrangeiros em cartaz, Três deles legendados.
São Leopoldo: Oito filmes estrangeiros, Três deles legendados.
Canoas: Seis filmes estrangeiros, NENHUM legendado.

Isso ocasionou que o novo Sherlock Holmes está em cartaz nestas cidades sem sequer uma cópia que não seja dublada, por exemplo. É um quadro cuja tendência é aumentar.

Isso é ruim? Bem, se somarmos a população destas três cidades de acordo com o último Censo, veremos que nada menos que 777.286 pessoas não têm a escolha de poder ver um determinado título com seu som original. Isso faz mal para o cinema, conforme defendi no meu texto original.

Onde o texto do Hisham se encaixa nisso? Na sentença "Eu acho o fato de que uma grande parcela prefere filmes dublados uma excelente defesa para a presença deles no cinema" -- mais ou menos repetida no comentário do Flagg, que diz "Sério, só o fato de à maioria do povo querer filme dublado já justificaria sua existência", complementando com "Mais útil seria gastar este tempo sobrando e fazer manifestos contra o Sarney e o Maluf" -- o que eu suponho que seja uma brincadeira pândega, já que é meu TRABALHO pensar e debater cinema.

Mas enfim, divago: estas colocações me fizeram pensar que eu não expus minha ideia corretamente. Ou por outra: que eu fiquei mais preocupado em desabonar o filme dublado do quem em sublinhar a ideia geral que eu tentava defender: a de que o crescente número de filmes dublados retira a possibilidade de OPÇÃO do espectador, deixando-o sem ter como escolher que formato prefere assistir.

Mais tarde, me aprofundarei porque esta falta de escolha é, ao ver, danosa para o cinema. Por enquanto, as refutações ao argumento do Hisham que se fazem necessárias:

A legenda é tão ruim quanto a dublagem: Para não dizerem que estou falando sozinho, vou evocar o crítico Pablo Villaça (que, num debate semelhante, chegou a dizer que este argumento é o "mais estúpido de todos"): "Então as legendas atrapalham a apreciação do filme, mas ouvir uma voz completamente diferente da original e em absoluta falta de sincronia com os movimentos labiais é algo que não incomoda? Mesmo? Há quem realmente seja capaz de alegar que a legenda seja uma distração maior do que a dublagem?".

Complementando daí: lógico que QUALQUER processo de tradução (e isso é um "problema" da literatura) terá perda do significado original. Porém, a legendagem é um método infinitamente menos traumático do que a dublagem. A começar pelo fato de que ela se baseia diretamente no roteiro final do filme enviado pelo estúdio, já com os tempos em que as legendas devem aparecer.

Ou seja, seu significado em relação à versão dublada é infinitamente mais próximo do original: se por um lado deixa de fora sutilezas (sempre por questões de velocidade da fala ou espaço), também resume sentenças que em certas línguas são mais extensas do que sua tradução -- na dublagem, o dublador terá que enrolar ou aumentar o texto para que caiba no tempo desta frase (em filmes e desenhos japoneses este problema é comum), deturpando o mais significado do que a supressão de eventuais subjetividades. E se a revelação de uma fala antes de ser dita pode acabar com o timming de uma fala, o que dizer deste sentimento com uma dublagem mal feita?

Lembrando do exemplo de Harry Potter dado pelo Hisham: as "traduções" das legendas são as traduções que os LIVROS sofreram e que o cinema manteve (a experiência de ver um HP dublado seria menos dramática neste sentido?).

Sobre a legenda arruinar o "pensamento na composição de uma cena (...), conduzindo o olhar meticulosamente como um quadro", creio que este argumento se deve a um certo desconhecimento de como a condução do olhar funciona no cinema em contraponto às artes visuais. Na arte cinematográfica, o olho do espectador é levado a certos lugares muito mais pelo movimento de câmera, pela montagem, pela mise-en-scène do que pela disposição do quadro. Até porque quando temos alguém falando em cena, imediatamente nosso foco se dirige para a boca.

Eu, enquanto realizador, prefiro infinitamente que alguém coloque letras (num espaço controlado e menos valorizado do enquadramento, diga-se de passagem) do que mude a voz dos meus atores de maneira onipresente. Até porque o cineasta pode prever a posterior existência de legendas no seu filme, mas não tem como saber como farão a dublagem. E posso garantir: a experiência que se pode perder com a legenda não se compara àquela perdida com a dublagem.

O filmes dublados na Europa: Isso é uma questão mais velha que o cinema preto-e-branco. Temos que levar em consideração a extensão das expressões em alemão (não por acaso, o país em que mais se dubla na Europa). Em alguns deles, podemos debater se as causas da dublagem não são mais fundamentadas no nacionalismo do que no gosto popular (como na França, onde o protecionismo à língua e ao cinema nacionais é pedra de toque). Tenho sempre um pé atrás quando debatemos diferentes realidade culturais tentando deixá-las análogas à nossa.

No entanto, olhem que interessante: no mesmo link disponibilizado pelo Hisham, vemos que na Suíça cidades com mais de dez mil habitantes exibem ambas as versões para um filme -- lembrem do início: aqui, mais de 700 mil espectadores têm cada vez menos esta escolha.

Eu fecho com o Hisham num ponto: "Acho que tem que haver espaço pra tudo, para que haja espaço para todos". Isso é lógico. Então porque eu defendo que uma supremacia de dublados é maléfica para o cinema?

Imaginemos então que as pessoas têm ido mais ao cinema porque os filmes são dublados e portanto mais acessíveis (e não por outros motivos). Vamos pensar por alguns instantes que os cinéfilos não sejam assim tão representativos nos lucros e que quem sustenta mesmo esta indústria seja o espectador eventual, que vai ao cinema poucas vezes por ano (até porque carecemos de pesquisas que nos digam o contrário). Ok, as pessoas vão mais ao cinema, criam um hábito de consumir cinema, enquanto os cinéfilos se dedicam a baixar filmes em casa por não aceitar vê-los dublados no cinema (esses radicais!).

Eventualmente, ao criar tal hábito e se aproximar da atividade cinematográfica cada vez mais, parcelas deste público poder aos poucos ir se tornando... Ora, amantes de cinema, que descobrem o quanto de qualidade fílmica eles perdem com as versões dubladas. Mas então, vamos ver filmes legendados! Só que... Bem, não tem filme legendado para ver no cinema. E agora?

Um círculo vicioso?

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Elegia a Steve Jobs

Talvez por eu ser o "cara de informática" entre os contribuidores mais ativos desse blog, ou por ter escrito um post chamado "Por que eu resolvi boicotar a Apple" aqui há algum tempo atrás, pareça apropriado eu escrever um post sobre a morte do Steve Jobs. Mas esses não são os motivos.

Minha história pessoal com a empresa de que ele foi co-fundador vem de muito longe. Eu tinha seis anos e um clone brasileiro de Apple II (o antecessor do Mac) foi o primeiro computador que eu vi ao vivo. Eu lembro da cena até hoje, tão bem quanto eu lembro do meu primeiro beijo. Se teve um momento que eu posso apontar e dizer "ali a minha vida mudou", foi naquela tarde de 1986. Naquele dia o computador chegou na nossa casa; era do meu irmão. Um ano depois, ele já era meu.

Isto, crianças, é um computador de 0,001 GHz

Minha rotina era voltar da escola, almoçar e depois passar a tarde programando aquela caixa bege com uma maçã colorida desenhada. Eu tinha 2 ou 3 colegas da turma de 42 que sabiam mexer em computador (isso era tão incomum que nem sequer nos chamavam de "nerds" na escola). Esses outros poucos todos tinham computadores MSX. Eu era a única pessoa que eu conhecia que tinha um Apple II. Ninguém com quem trocar dicas ou programas além de uns poucos livros e revistas. Aquele computador era praticamente parte da minha concepção pessoal de indivíduo. Naquele tempo, Hisham ↔ Apple II.

Passados os anos 80 e meados dos 90, era hora de trocar de computador. O sonho era trocar para um dos Apple "novos", os Macintoshes. Não esses Macs que vocês conhecem. Algo como um desses aqui:

Um Mac dos anos 90

Infelizmente eles eram estupidamente caros no Brasil, ainda mais para um adolescente pedindo pro pai. Minha segunda opção era um Amiga, mas acabei ganhando um PC 486. Na época, foi "meno male", porque com a popularização dos PCs acabei com isso saindo da minha "ilha" e podendo ter contato com uma base de software maior (isso era antes da internet, e software tinha que passar de mão em mão — sim, pirataria, porque a imensa maioria não tinha para comprar no Brasil nem se a gente quisesse). Além disso, a Apple ia mal das pernas. Era a fase em que o Steve Jobs estava fora da empresa. A história é famosa e não vou repeti-la aqui.

Passei anos afastado do mundo Apple, mas acompanhando de longe. Com a chegada da internet, revisitei meu passado de Apple II através de emuladores e acompanhei as notícias da volta de Jobs à empresa com o curioso cargo de "iCEO" (interim CEO) e o posterior lançamento do "iMac", cuja ironia no nome era evidente a todos.

O primeiro iMac: quando foi lançado, o povo reclamava que ele não tinha drive de disquete

Quando ele voltou e lançou o iMac, a Apple estava bem mal das pernas, perigando quebrar, assim como aconteceu depois com tantas outras empresas super-cool dos anos 80 e que não existem mais, como a Sun e a Silicon Graphics. (Parênteses: se vocês acham o hardware da Apple bacana, comparem o Mac bege dos anos 90 da foto ali de cima com essa workstation Silicon Graphics da mesma época:

Uma Silicon Graphics dos anos 90. Outra coisa, né?

Fecha parênteses.) Pois é, coolness existia, estava por aí, mas era um animal ameaçado de extinção num mundo de informática dominado por PCs genéricos rodando Windows 98 infestados de vírus, DLLs incompatíveis e conflitos de hardware (lembram do stress que era configurar coisas como COM, IRQ e DMA de placas de modem, som, etc.?)

Quando foi afastado da Apple, Jobs passou os anos 90 no mundo das workstation high-end, onde todas rodavam alguma versão do sistema operacional mais cool que há, o Unix. Quer dizer, cool para quem sabe apreciar a "coolness de um sistema operacional", ou seja, programadores. Sistemas da família Unix não eram pra qualquer um. Eram complicados de usar e só rodavam em máquinas caras, workstations de alguns milhares de dólares. Uma trupe de voluntários espalhados pela internet, porém, estava trabalhando duro para mudar isso e tornar o Unix acessível a todos (um deles, um certo estudante finlandês chamado Linus, acabou cedendo o próprio nome a esse libertário membro da família Unix).

De volta à Apple, Jobs trouxe da sua experiência no mundo das workstations uma simples ideia que parecia alienígena ao mundo dos computadores pessoais: fazer computador usando um sistema operacional que, bem, funcione.

A mídia vai fazer homenagens e homenagens a Jobs dando a ele títulos como "o criador do iPod", "o criador do iPhone" e coisas do gênero. Dar a ele crédito como "criador" desses produtos, onde inúmeras pessoas trabalharam na pesquisa e desenvolvimento, desde o design à engenharia, é algo simplista e um tanto errado. Mas todo o crédito do mundo deve ser dado ao pulso que ele teve de bancar a migração do sistema operacional dos Macs (chamado inicialmente apenas de "System", e depois "Mac OS") para uma sólida base Unix: o Mac OS X. E depois que o mundo descobriu o que é um computador que funciona, tudo mudou.

À primeira vista pode parecer que eu estou apenas sendo um nerd, valorizando uma tecnicalidade que ninguém vê em detrimento a todos esses outros grandes sucessos da Apple dos quais Jobs foi sempre a face visível. Mas não. Essa cartada, e o sucesso dela (que lhe deu cacife para os projetos posteriores, começando pelo iPod), resume a maneira de pensar que vigorou no segundo reinado de Steve Jobs na Apple: "trabalhar com uma ideia simples e fazê-la direito de modo a produzir algo que preste."

Um enunciado desses pode parecer ridiculamente óbvio, mas quando a gente destrincha nos detalhes, quem mais fazia (ou faz) isso? A gente vai lembrando das outras grandes empresas de informática, e incrivelmente, ninguém mais se encaixa nessa visão. Empresas como a Microsoft, amarradas em perpetuar bugs passados em prol da eterna compatibilidade, nunca assim corrigindo os próprios erros? Empresas como Dell, HP e cia, que te vendem laptops com um mar de porcarias e iconezinhos idiotas pré-instalados? Empresas como a Sony, que desrespeitam o consumidor com reincidentes casos de spyware? Essas são tosquices que a gente nem conseguiria imaginar vindo da Apple. Num mundo onde a tosquice impera, a Apple conseguiu se tornar uma empresa mítica, simplesmente não sendo tosca.

Quando o iPhone surgiu, basicamente todas as features que ele possuía já existiam em um ou outro telefone. Palmtops como o Palm já tinham grandes comunidades de desenvolvedores e bastante gente já levava centenas de aplicativos no bolso; mas isso não havia chegado ao grande público. O design do iPhone era simplesmente a coisa mais óbvia a se fazer. Mas os concorrentes deixavam seus smartphones toscos de propósito: qualquer outro telefone da época, quando tu pegava, era "legal, só que tem esse UM defeito". Coisas que tu notava que tinham sido deixadas de fora para que o modelo "330X" fosse pior que o "350X" (só que daí o maldito 350X não tinha a câmera boa como a do 330X, ou algo do gênero).

Antes do lançamento do iPad, eu lembro de falar com meus amigos, "cara, toda a tecnologia pra fazer tablets tá aí, e só o que existe é esses híbridos malucos da HP rodando Windows, ou palmtops baseados em plataformas moribundas, e nenhuma empresa, nem Sony, Dell, HP, ninguém, se presta a fazer um laptop touch sem teclado! Vai acabar a Apple lançando um, como fez com o iPhone, e aí todos os concorrentes vão correr e lançar alguma imitação tosca em seguida."

Se tem algo por que o Steve Jobs merece ser lembrado e homenageado, é o fato de ele ter sido um CEO de empresa de tecnologia que mandou os seus funcionários fazer o que todo mundo que trabalha com tecnologia deveria fazer: olhar para frente, e não pro lado.

Sim, isso deveria ser a regra, mas num mundo onde todas as empresas estão olhando para o lado, cuidando cada passo que dá o concorrente, medindo cada risco e o seu impacto no relatório trimestral para os acionistas, promover inovação em uma empresa de um mercado tão ferrenho quanto tecnologia se tornou a exceção.

Quanto ao futuro da Apple, eu não me preocupo. Mesmo que a Apple pare de inovar na escala em que inovou nessa década passada, ela hoje tem o potencial de se manter por cima da carne seca por um longo tempo, assim como a Microsoft ainda é líder de mercado com base na inércia do seu sucesso na era MS-DOS/Windows. iTunes virou sinônimo de comprar música em boa parte do mundo. Aliás, a Apple Computer, aquela empresa que eu acompanhava desde criança, muito antes dos hipsters colarem maçãzinhas nos seus carros, não existe mais: mudou de nome, virou Apple Inc., empresa de produtos eletrônicos variados. E mesmo que tudo dê errado com a Apple e ela quebre, bom, tantas outras empresas cool já vieram e já foram. Eu iria sentir falta dos Macs tanto quanto sinto falta dos Amigas.

Lembro quando a Apple estava por baixo no fim dos anos 90 e a gente falava: "Tu acha que a Microsoft é malvada e a Apple é boazinha? Se eles estivessem em posições trocadas iam fazer igual." E sim, assim que ficou por cima a Apple fez sacanagens como aquela que que eu falei no post do ano passado (update: algum tempo depois, ela voltou atrás). A diferença é que mesmo em posições trocadas, uma empresa como a Microsoft não inova como a Apple. A Microsoft trabalha com "good enough to sell". Falta à Microsoft a fagulha do espírito do "insanely great". Assim como falta a tantas outras empresas, que às vezes têm genialidade dentro de casa e não sabem o que fazer com ela. A Xerox tinha interfaces gráficas com mouse por uma década, mas não sabia o que fazer com isso.

O que eu espero que fique como legado de Jobs são as lições que ele deu pra essa indústria da qual eu faço parte. De que é melhor fazer o simples, fazer o que presta, e não ser tosco. De que, se promovido sem grandes mancadas, o melhor produto vai realmente ganhar o mercado. De que os detalhes importam. De que não basta ter a melhor ideia, tem que fazê-la acontecer.

O Apple I

Mas pessoalmente, o que eu gostaria mesmo era de agradecer a Steve Jobs por ter feito sair da garagem a genialidade de Steve Wozniak, ajudá-lo a "fazer acontecer", e assim transformar aquele protótipo em caixa de madeira dele em uma empresa que criou a noção de "computação pessoal" antes do surgimento do PC, e que com isso levou computadores às casas de milhões de pessoas, incluindo à daquele garoto na longínqua São Leopoldo em 1986.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Sobre Dublagens e Legendas, ou "Porque incomodar o Ulisses é divertido"

Meu querido amigo Ulisses escreveu no seu blog um Manifesto contra o filme dublado, cheio de argumentos bons e coerentes (e alguns, nem tanto: por que uma determinada atitude que não prejudica ninguém e é o gosto de alguém não seria defensável? Eu acho o fato de que uma grande parcela prefere filmes dublados uma excelente defesa para a presença deles no cinema — assim como é a existência de cópias 2D para filmes que foram pensados em 3D, por exemplo). Tudo o que o Ulisses falou sobre os problemas do filme dublado é verdade:
  • Adultera o trabalho do ator
  • Adultera o som
  • As falas são alteradas por gente que não participou da sua concepção
Só que aí a gente pode continuar pensando esse assunto: se a dublagem, nas palavras do Ulisses, "deturpa a obra cinematográfica", o que dizer das legendas?

É, as legendas. Se a dublagem adultera o trabalho do ator, as legendas adulteram o trabalho do roteirista (e do ator, em diálogos improvisados). Muitas vezes a sutileza de uma escolha de uma palavra se perde totalmente, pra não falar das vezes em que a tradução da legenda está simplesmente errada. Quantas vezes vejo gente, ao citar uma fala de um filme, na verdade citando a legenda: ou seja, reproduzindo a escolha de palavras da pessoa responsável pela tradução, e não pelo roteiro.

Em outras situações uma frase é enunciada com determinadas pausas de modo a produzir um determinado suspense, para que uma determinada expressão facial acompanha aquela palavra-chave... e a legenda já mostrou a frase inteira antes de o ator ter a chance de dizê-la.

Além disso, se a dublagem afeta o som, a legenda afeta a imagem. A gente muitas vezes nem se dá conta do quanto a legenda desvia o nosso olhar. E lá se vai o foco na fotografia do filme. Não me refiro apenas a coisas como cenas de escuridão total com apenas uma voz em off, que passam a ter um letreiro na tela. Todo o pensamento na composição de uma cena na tela, conduzindo o olhar meticulosamente como um quadro... e nossas vistas passando a metade do tempo olhando para o canto inferior central da tela, com frases que piscam a cada 3 segundos buscando nossa atenção.

Quem fala o idioma estrangeiro do filme (tipicamente inglês, nos filmes que passam aqui) percebe isso bem menos. Isso se ameniza mesmo em línguas que não dominamos mas com a qual temos alguma familiaridade (espanhol, francês, italiano...). Mas nem sempre, e nem para todos, é assim. Esses tempos assisti a um filme japonês depois de muito tempo só vendo filmes nessas outras línguas. No momento em que eu tive uma relação de dependência total da legenda para entender o que era dito, fiquei chocado ao ver o quanto da imagem eu perdia. Eu vi que não conseguia olhar nos olhos dos personagens durante um diálogo.

Senti na pele o que quem não fala nada de inglês sente e vi ali o quanto as legendas afetam a experiência de ver um filme, e o quanto a gente que está acostumado e fala outro idioma não percebe isso. Acabo pensando que isso é mais um pequeno fator para a falta de popularidade de filmes estrangeiros nos EUA, por exemplo, ou para dublagem ser mais a regra do que a exceção em vários países, como os de língua alemã.

Não estou com isso defendendo que dublagem seja melhor do que legendas. Entre as duas opções, eu sempre prefiro filmes legendados. Mas mesmo se você fala o idioma original do filme, não há como ignorar totalmente as legendas. Eu assisti ao longo de uma semana os filmes do Harry Potter, todos no original, sem legenda. Ao chegar no cinema para ver o último, cada nome de personagem ou objeto que era baseado na tradução do livro e aparecia na legenda do filme diferente do original ("Olivaras!?") me distraía e inevitavelmente incomodava. Prova que, mesmo não precisando da legenda, quando ela está lá ela acaba puxando a atenção.

Porém, tem o seguinte: muitas pessoas não sabem ler, ou sabem mas não têm o traquejo pra ler confortavelmente na velocidade das legendas. Sim, eu conheci pessoas nessas duas categorias, e sim, eram pessoas com viabilidade econômica de ir ao cinema. O filme dublado é uma excelente opção para elas. Preferiria eu ver o Harry Potter 7.2 no cinema em 3D com som original e sem legenda alguma? Sim, preferiria (ainda mais num filme 3D, onde a legenda interfere com a profundidade e o senso de imersão). Mas assim como não sou elitista a ponto de clamar por salas de cinema sem legenda, também não vou defender o fim dos filmes dublados nas salas de cinema. Acho que tem que haver espaço pra tudo, para que haja espaço para todos.