terça-feira, 6 de outubro de 2009

Kieslowski e o pensar no espectador


Meses atrás, o Gustavo me sugeriu um post sobre o cineasta polonês Krzysztof Kieslowski -- e eu fiquei pensando durante todo este tempo: o que escrever sobre um dos melhores diretores europeus das últimas décadas?

Kieslowski teve uma trajetória inusual: apesar de trabalhar em cinema desde 1960, a fama chegou apenas no final dos Oitenta com um seriado para a televisão polonesa, o celebreado Decálogo. Na sequência, foi "importado" para a França, onde fez suas obras mais significativas: A Dupla Vida de Véronique e a espetacular "Trilogia das Cores", que no Brasil recebeu os títulos de A Liberdade é Azul, A Igualdade é Branca e A Fraternindade é Vermelha -- tradução que acaba estragando a sutileza dos nomes originais (Três Cores: Azul, Branco e Vermelho).

Todos são trabalhos belíssimos, enquadrados naquilo que se convencionou chamar de "cinema de arte", um termo que eu abomino. De qualquer maneira, estava recentemente revendo os filmes da "Trilogia das Cores", dando uma certa atenção ao extras. Um dos featuretes, La Leçon de Cinéma, era interessantíssimo: entervistas curtas com o próprio Kieslowski na sala de montagem de cada uma das fitas, em que ele debate pontos específicos das suas escolhas estéticas.

No caso de A Liberdade é Azul, o polonês explica uma cena em que a protagonista Juliette Binoche deixa um torrão de açúcar absorver café de uma xícara. Krzysztof conta que ele e o seu assistente de direção tentaram vários tipos de torrões. O objetivo era encontrar um que absorvesse o líquido em cinco segundos, tempo que o diretor considerava o exato para a tomada. Depois de várias tentativas (com torrões que demoravam três segundos, outros que demoravam onze), finalmente acharam o certo.

À primeira vista, a história é um exemplo daqueles preciosismos tolos, um perfeccionismo que uns exaltam, outros desprezam -- e que muitos diretores usam para fazer a sua fama. Dentro, aliás, do tal "cinema de autor" ou do universo dos "filme de arte", estas escolhas indiscutíveis do diretor costumam ser tratadas como sagradas. Por que exatos cinco segundos? Ora, porque o diretor quer assim, e pronto.

No entanto, o esforço de encontrar o torrão certo tem um outro motivo que não os desejos pessoais de Kieslowsky. Didaticamente, ele diz na entrevista: acreditava que o público ia achar maçante se, na cena, o açúcar demorasse para absorver o café; por outro lado, se fosse rápido demais ninguém notaria o efeito. Ele, enquanto realizador, tinha convicção que o timming exato da cena para o público seria de cinco segundos. Uma decisão tomada tendo em vista o anônimo que estaria, em algum lugar do mundo, vendo o seu filme.

Estamos acostumados a ver artistas de várias linguagens, não só do audiovisual, a justificar seus equívocos e más obras sob o inalienável direto de expressão pessoal, abrindo caminho para trabalhos que nada dizem a ninguém. Da minha parte, considero um talento raro este pensar no público que possa, eventualmente, acessar a obra de arte. Os grandes artistas têm este "dom" (na falta de uma expressão melhor), esta generosidade de pensar nas emoções e reações daqueles desconhecidos que compartilharão experiências com a sua arte.

Isso, claro, não quer dizer necessariamente condescendência (no sentido de fazer concessões ao público apenas para atingir sucesso comercial, tornando a obra mais "fácil"). É uma visão maior, que inclui o espectador como uma espécie de artista último, aquele que dá uma definição e formato final (e pessoal) à arte -- justificando o significado da própria existência da arte.

12 comentários:

  1. Uli, essa explicação do torrão de açúcar é fantástica mesmo. Sempre conto este episódio quando quero explicar o preciosismo do cara pra alguém.

    Vou fazer um post (vai entrar na fila... :) sobre as trilhas do Preisner. É impossível descolar as mesmas dos filmes.

    E, claro, entre tantos assuntos a comentar sobre Kieslowski, cito o "pensar no *pensar* do espectador". No caso da trilogia das cores, houve uma transposição dos sentidos de igualdade, liberdade e fraternidade para os dias atuais. Idéia muito bem sacada.

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  2. Agora entendi totalmente o nosso debate sobre a primeira versão do ninho dos pequenos.

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  3. Hehehehe, o divertido não é só o preciosismo em si, mas o motivo do preciosismo.

    Também pensei em escrever algo sobre as trilhas do Zbigniew Preisner, especialmente no genial uso de música no "A Liberdade é Azul", mas seria um ensaio do ponto de vista analítico da linguagem cinematográfica.

    E Jackson, me diga o que tu entendeu. ;)

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  4. Eu queria não ser tão "bronco" pra debater com vocês. Gu me empresta os filmes pra eu ver!

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  5. Vi a trilogia de novo recentemente, em função do Programa de Cinema (coloquei as trilhas sonoras dos três filmes em três programas seguidos, com uma ceninha de cada um tb). Me dei conta de uma coisa até um pouco triste, que o Ulisses só veio confirmar agora: diretores "preciosistas" andam em falta no cinema mundial.

    Até mesmo produções europeias, porém mais recentes, me parecem estar sendo feitas muito mais na base da "proBosta" do que na "proPosta". Lógico, existem muitos e ótimos pontos fora dessa curva de mediocridade (pra ficar só em um exemplo, o recentemente citado aqui no blog "Entre os Muros da Escola", que é um GRANDE filme). Mas a necessidade de produções feitas a toque de caixa e, principalmente, nos moldes que agradam a críticos e júris, geralmente para entrarem em mostras competitivas de Festivais, parece estar deixando muitos ótimos diretores um pouco desleixados com seus trabalhos.

    Será que Kieslowski, se estivesse vivo, estaria nessa onda também?

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  6. Essa trilogia das cores lembra o pastor da minha igreja.

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  7. Que livre associação de ideias, hein, seu Roberto? "O azul apresent... digo, preto apresenta".

    Pois então, Chico, acredito que nem é tanto questão de proBosta. A linguagem moderna no audivisual, que tende ao que eu chamo de "super-naturalismo" -- com fotografia cada vez mais crua, câmera na mão, quase sem trilha sonora -- tira um pouco a possibilidade de fazer algo preciosista. Eu, pelo menos, não conheço nenhum diretor que hoje leve adiante o legado de caras como o Kieslowsky, ou Akira Kurosawa, ou mesmo Stanley Kubrick.

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  8. Pois ntão, Ulisses, a maioria do "super-naturalismo", pra mim, é proBosta.

    E, realmente, não existe hoje alguém como os caras que tu citaste. Não na questão do preciosismo que tem algum propósito, ao menos.

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  9. A idéia do naturalismo é aproximar a arte da realidade, tornando a primeira uma descrição o mais fiel possível da segunda. Isto tem resultados interessantes em algumas artes, como na Literatura por exemplo. Mas em outras, não faz muito sentido.

    A Literatura é uma arte pura, onde entre o artista e sua obra, não existem intermediários. O fator limitante é a lingua. O cinema por sua vez, é uma arte muito técnica. Talvez a mais técnica de todas. Portanto, existem diversos processos entre o artista e sua obra e entre a obra e o apreciador. Isto torna problemática esta linha de pensamento, já que o desuso dos processos pode descaracterizar a arte.

    Por outro lado, estas quebras de paradigmas sempre ocorreram. Os modernistas foram muito criticados no início do movimento. Hoje em dia podemos ir na Pinacoteca e admirar uma exposição cubista sem se horrorizar. A linha entre proPosta e proBosta é muito tênue e depende do contexto.
    Podemos analisar se o sujeito parte para este super-naturalismo com a pretensão de quebrar paradigmas ou porque é preguiçoso e não domina a técnica. Mas mesmo no segundo caso existem ressalvas, como o caso Ramones, que pela sua preguiça e incompetência acabaram criando um grande movimento na música pop.

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  10. a maioria do "super-naturalismo", pra mim, é proBosta.

    Na música também? :)

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  11. a visão humana crua, natural, nunca vai ser igualada por uma câmera na mão. As vezes não acho que seja falta de habilidade, até, casos e casos... Acredito mais que a pessoa com a câmera na mão quer passar a sua experiência como é e não percebe que, na verdade fica muito longe disso. O único jeito de passar e criar uma sensação é aprofundar a técnica, é pensar na arte (no pensar do espectador, etc). Na música também. Quanto mais o som se aproxima de algo natural, mais se perde qualquer proposta, inclusive. Sem entrar no mérito do que é arte, mas o naturalismo acaba não servindo pra nada mais além de uma gravação. O probosta, apenas uma opinião, não é mais do que proposta nenhuma.

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  12. PS: o naturalismo da literatura tem técnica

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