domingo, 5 de julho de 2009

Digitalização no audiovisual: democratização ou preguiça?

A pedidos, um comentário meu na discussão “Auto-tune: ferramenta ou charlatanismo?” transformado em post: uma visão – através da retina do audiovisual – de como as tecnologias digitais mudaram as relações de produção na arte:

As formas de arte reproduzíveis (que, por conseguinte, são a base da indústria cultural) atravessam um momento de transição com o advento de tecnologias de captação, produção e correção, cada vez mais acessíveis. Algumas delas são capazes de "maquiar" qualquer problema que um filme/vídeo/novela possa ter. O que acontece na música acontece no audiovisual também: atualmente, todos os filmes passam por cuidados processos de finalização, onde se corrigem “defeitos” de fotografia e até mesmo problemas de cenário, som, objetos vazando no cenário e inclusive de atuação – a palavra “defeitos” está entre parênteses mesmo porque, às vezes, não são coisas erradas de fato: são frutos da vista preciosista dos seus realizadores na pós-produção. Por outro lado, vigora nos sets uma filosofia não declarada de “deixa assim que a gente arruma depois”, deixando para os finalizadores a função de acertar o que não foi corretamente pensado ou realizado no momento da captação.

Dentre as inúmeras possíveis maneiras de enxergar a situação, eu cito duas declarações – uma do Francis Ford Coppola e outra do Peter Jackson.

Coppola, no documentário O Apocalipse de um Cineasta, sobre a problemática produção de Apocalypse Now (muito recomendável, aliás), diz que um dia qualquer pessoa fará, com sua câmera caseira, o seu filme – ou, no exemplo que ele dá, “aquela garota gordinha de Ohio poderá ser o novo Mozart do cinema, usando a câmera de seu pai”. No vídeo do link, é aos 20 segundos que aparece a fala. Coppola está se referindo, na verdade, aos clássicos equipamentos de Super-8 (a entrevista já tem um certo tempo), mas o seu conceito certamente se expande para a revolução do home video e posterior criação de formatos digitais.

Em suma, a digitalização permite uma democratização inacreditável: os recursos ficaram mais acessíveis, menos complicados e menos custosos. Se não fosse assim, dificilmente eu, o Roberto, o André e o Chico estaríamos fazendo curtas-metragens na cara e na coragem (só pra citar os que contribuem com o Sol Desafinado). Estes recursos digitais de correção permitem também a qualquer pessoa poder tratar o seu material da maneira mais profissional possível e, assim, ter maiores chances de atingir um público mais amplo. Nas palavras de Coppola, isso enfim destruirá o “profissionalismo” do cinema, o que para ele significa transformar o cinema em arte de verdade

Esta democratização acontece na música há muito tempo, se formos pensar através deste viés. No mínimo, desde quando o punk "afirmou" que tu não precisava tocar para ser músico (eu já diria que esta democratização vem desde os tempos do jazz, que foi já um estilo com a pecha de bate-estaca). O que acontece é que a digitalização é a ferramenta de quem não tem necessariamente o talento necessário – levando-se em conta que todos têm o direito inalienável de se expressarem artisticamente. Que diga o Roberto, que gravou músicas para um certo rapper chamado Leco Lenda Viva.

Por outro lado, Peter Jackson, nos extras da edição especial do "King Kong" original (1933), ao comentar sobre o laborioso processo de efeitos especiais artesanais de 70 anos atrás, afirma que os cineastas de hoje são imensamente preguiçosos (infelizmente, não achei o trecho em questão no YouTube). A facilidade de se fazer virtualmente qualquer elemento visual dentro de um computador afastou os artistas de cinema daquela busca sofrida e calejada por um fim artístico maior, por patamares novos e desconhecidos. A própria falta de limites técnicos, na verdade, parece se refletir num limite, este sim grande, de criatividade. Antes, os cérebros dos artistas de cinema precisavam encontrar formas cativantes de se fazer coisas pensadas como impossíveis, cujo maior charme é exatamente seu efeito estético, não a sua perfeição.

A "democratização" seria danosa neste sentido, porque os filmes deixariam de buscar excelência artística - como os bons filmes clássicos faziam, com todas as limitações possíveis. As obras se nivelariam por baixo, por assim dizer. E de fato, nunca foram feitos tantos trabalhos autorais – que ninguém vê/ouve – como neste início de milênio.

Eu confesso que jogo nestes dois times. Sou um classicista assumido no que tange ao cinema e sou da opinião que “ser experimental” é algo muito fácil: bastamos produzir qualquer colagem de imagens em diferentes técnicas de captação e pronto, estamos sendo experimentais. Difícil mesmo é fazermos algo novo com conhecimento de causa, sabendo que está se fazendo algo novo. Entretanto, não fosse o acesso facilitado a várias tecnologias de produção audiovisual, estaria até agora reclamando de não ter nascido no subúrbio de Los Angeles, onde seria talvez mais fácil encaminhar uma carreira no cinema.

E então pessoal? O que acham?

8 comentários:

  1. acredito que o experimentalismo, a bricolage de efeitos, a construção de um impacto visual (tirar uma onda só que sem uma boa idéia) experimental no cinema sempre existiu, só que custava mais caro, daí o malandro tinha que ter um bom troco pra participar dessa nobre brincadeira.

    Daí coisas boas e ruins sempre estiveram presentes no meio da arte. Só que agora mais gente vai tá produzindo imagens por aí, daí virão muito mais distinções, mas no final de tudo, o talento e a boa idéia continuarão a fazer diferença...
    (creio eu)
    boa discussão

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  2. Sim, o problema não é o experimentalismo em si, mas o experimentalismo feito pura e simplesmente para parecer "inovador". A experiência nas artes, acredito eu, não pode se justificar por si só.

    A experiência que funciona, normalmente, é aquela baseada num conceito bem embasado, que serve de espinha dorsal para todas as áreas do filme. Acredito que o mesmo serve para as demais artes.

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  3. Eu concordo. Não sei se eu sou um classicista, mas definitivamente não me convenço com os argumentos contemporâneos de "arte pela arte". Em especial, concordo que a experiência nas artes não pode se justificar por si só.

    O André chegou a pincelar algo sobre isso em um comentário passado, falando que hoje em dia o que conta é o "processo". Tenho minhas dúvidas, mas ao mesmo tempo acho que o processo exerce um papel e não é só o resultado que conta. Acho que são três fases, início, meio e fim: intenção, processo e resultado.

    Em arte experimental onde "a intenção é o processo" ou o resultado é secundário ao processo, eu sinto que fica faltando alguma coisa.

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  4. Desculpa, Hisham, eu não te acompanhei na questão sobre processo, intenção e resultado. Quer dizer, eu entendi por alto, mas tu podia ser mais específico -- ou, como nosso amigo Coutinho, mais consistente? :D

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  5. Putz, não sei se vou conseguir ser mais consistente porque nunca elaborei direito uma "teoria estética" :) mas vamos tentar... provavelmente eu vou acabar repetindo o beabá que o pessoal de humanas deve aprender no primeiro semestre, mas pra mim pelo menos eu fui enxergando essas coisas com o passar do tempo.

    Bom, intenção, processo e resultado.

    Intenção: o impulso pré-artístico, o caminho até o conceito que norteia a obra. A intenção não é o desejo de "eu quero fazer uma música", ou "eu quero fazer uma música assim-e-assado". É o que vem antes disso, é o desejo de "eu quero dizer isso", é o "eu quero expressar esse sentimento" (que possivelmente eu nem tenha palavras pra descrever).

    Processo: é o fazer artístico. É onde, aos olhos de quem está de fora, a arte e o craft se confundem. Afinal, fazer um quadro é pincelar tinta na tela, compor uma música é escolher acordes e estruturar versos e refrões. O processo é o porque aqui e não ali.

    Resultado: é a obra final, e como ela se sustenta. Um bom resultado, pra mim, é o espelho da intenção. Por "como se sustenta" eu quero dizer "como a obra é capaz de gerar o afeto por si só".

    Se, por exemplo, alguém faz uma música e a impressão imediata que ela gera é "bah, tu te puxou, hein?" isso é um comentário sobre o processo -- o que transpareceu na obra foi primariamente o processo, e não a intenção.

    Se um trabalho é feito com a intenção de "ser experimental" o foco está definitivamente no processo: a intenção é lidar com o processo e ver o que sai dali. (Mesmo assim, o que faz a gente escolher um caminho ou outro durante o processo é algo prévio, que é o nosso "gosto", que obviamente não foi construido do nada durante o processo.) Mas qual é o resultado que isso gera? Talvez a intenção nesse caso seja externar o gosto do artista. É o artista dizendo "isso é arte para mim", para o que eu olho e digo "ok, parabéns, e daí?".

    Uma crença que eu tenho é que as mais sublimes obras de arte são o fruto de um sentimento tornado intenção que conseguiu atravessar o processo e se representar no resultado de forma tão completa que ele enfim nos alcança -- aquilo que é a semente da arte mais sublime está presente em qualquer pessoa. Aquele mendigo no cruzamento já sentiu algo tão intenso quanto aquela sensação que motivou Beethoven a fazer a 5a. sinfonia. Um deles teve meios para transformar aquela sensação em algo que chega até nós, o outro não.

    Pra ficar no exemplo mais comum: todo mundo ama alguém, e ninguém ama de forma igual, então dizer "eu te amo" não projeta verdadeiramente o sentimento. Mas como fazer aquilo que eu sinto, e mais ninguém sente, ser compreendido? Essa é a beleza maior do processo, ao meu ver. Essa ponte entre a intenção e o resultado que leva de volta à intenção. Não o processo em si.

    A beleza do processo em si é uma beleza menor, é a beleza do trabalho do artesão -- ver as toras de madeira virarem uma cadeira é mais bonito do que a cadeira em si. Mas no fim, uma cadeira é uma cadeira e é isso que vamos levar do trabalho do artesão. De um trabalho bem-sucedido do artista levamos mais: não só o processo, mas conseguimos alcançar um sentimento -- e se conseguimos alcançar o sentimento dele, foi porque o mapeamos, seja por similaridade ou por contraste, em um sentimento nosso. E assim é que arte nos aproxima de nós mesmos, que é o motivo pelo qual a gente procura a arte.

    PS: comentário que eu acabei de escrever pro Chico no MSN: "bah, que maldição, essas perguntas do Ulisses me fazem passar um longo tempo escrevendo, porque tocam em assuntos que eu não gostaria de abordar com a brevidade de um post ou comentário... acaba sempre ficando enorme e ao mesmo tempo o "resumo do resumo"..."

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  6. Hisham, eu ainda não respondi porque estou analisando as tuas colocações de maneira a poder contribuir para algum lugar, e não simplesmente concordar ou discordar (neste sentido, é legal debater assim, sem ter o imediatismo do debate oral). Mas, de modo geral, eu fecho com o que tu pensa, tendo alguns pontos de discordância -- que eu atribuo mais às diferentes vivências que nós temos das nossas artes do que a qualquer outra coisa. ;)

    "que maldição, essas perguntas do Ulisses me fazem passar um longo tempo escrevendo" -- tá, eu sou uma mala, entendi, hehehehe!

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  7. Beleza.

    Mas reparei que faltou uma coisa importante a ser comentada nesse tópico sobre a digitalização.

    O Peter Jackson pode achar que cineastas de hoje são imensamente preguiçosos ao usarem efeitos especiais digitais, mas a quantidade de trabalho envolvida para fazer os efeitos especiais de hoje usando computadores é a igual ou maior (e eu aposto em "muito maior") do que naquela época. A diferença é que o trabalho ao invés de ser feito por pintores, carpinteiros, escultores, maquiadores (e toda a equipe de um set de filmagem), hoje é feito por programadores, designers 3D, artistas do meio digital. Basta olhar o scroll de créditos de qualquer filme que use quantidade considerável de efeitos pra ver a quantidade de pessoas envolvidas nessa parte, e conseguir tirar daí a temperatura da trabalheira que é.

    Nesses filmes de animação 3D, em particular, pra fazer essa evolução visual que a gente tá sentindo (basta comparar A Era do Gelo 1 com os filmes que são feitos hoje em dia), os caras não apenas se puxam trabalhando melhor com as ferramentas, mas eles criam novas ferramentas para que os artistas usem. É aí que entram os programadores. Para Monstros S/A, por exemplo, foi criada uma nova forma de gerar pelos em 3D.

    Em filmes não-animados, esse trabalho dos programadores é ainda mais importante, pois é a qualidade do ferramental provido por eles que permite que os artistas 3D produzam efeitos especiais "transparentes", que não pareçam coisa "de computador". Pros padrões visuais de hoje, o Homem-Aranha do Spiderman 1 é um bonequinho de videogame, mas na época impressionou -- é outra boa amostra de como as coisas vêm evoluindo.

    Ainda assim, é trabalho dos artistas saber usar as ferramentas que os programadores criam e extrair o melhor delas e contornar as suas limitações. É só ver filmes como Toy Story 1, onde eles contornaram genialmente a falta de realismo da tecnologia da época ao retratarem brinquedos, que são coisas feitas de plástico (talvez o material mais fácil de modelar em CG) e que não precisam ter expressões faciais realísticas, e Matrix 1, cujos efeitos especiais hoje podem parecer "datados" (por terem sido copiados à exaustão ao longo da década) mas em momento algum parecem "mal-feitos", mesmo hoje (além do fato de que qualquer "irrealidade" nos efeitos pode ser atribuída à irrealidade do mundo do filme).

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  8. "A diferença é que o trabalho ao invés de ser feito por pintores, carpinteiros, escultores, maquiadores (e toda a equipe de um set de filmagem), hoje é feito por programadores, designers 3D, artistas do meio digital."

    É exatamente neste sentido que ele estava falando, que era antes um trabalho "braçal" e com enormes chances de erro. Em parte, ele fez um comentário jocoso.

    No mais, muito bem apontado, Hisham.

    Há uma questão no diz respeito ao conceito de "mal-feito", em especial nos efeitos especiais. Teoricamente falando, o efeito especial ideal e bom não é aquele que é "perfeito" por si só, mas sim aquele que possui impacto estético e integração com a ação real.

    Por isso a gente olha hoje a abertura do Mar Vermelho nos Dez Mandamentos de 1956 e continua achando espetacular, por mais que seja uma técnica pra lá de ultrapassada.

    Tu tem muita razão em apontar que o número de pessoas envolvidas com efeitos especiais hoje é necessariamente maior. Não existe mais aqueles filmes cujos efeitos eram feitos por uma pessoa só, como no caso do Ray Harryhausen.

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