quarta-feira, 1 de julho de 2009

Idiomas, traduções e significado

"Traduttore, traditore." -- ditado italiano
Recentemente, vários pensamentos relacionados ao tema do título desse post passaram pela minha cabeça. Há algumas semanas vim tentando juntar isso tudo de uma forma coesa. Como não consegui, resolvi jogar as ideias aqui assim mesmo, como um "scrapbook de pensamentos" para fazermos uma mesa-redonda e quem sabe produzir mais ideias. :-)

Tradução e época - Recentemente eu li "A Metamorfose" do Kafka na tradução da LP&M. Pouco depois, teve a Maratona Literária, onde eles leram o livro pela tradução da Companhia das Letras, ao mesmo tempo que no telão passava o texto de uma tradução portuguesa (que deve ter sido a única em idioma português que eles conseguiram em forma eletrônica pra pôr no telão). Me chamou a atenção como o texto lusitano me soava estranho frente ao brasileiro, e como uma leitura tinha uma "proximidade" que a outra não tinha. Para uma expressão de surpresa em alemão, por exemplo, aqui se fala de um jeito e lá de outro. Isso me fez pensar que deve ser interessante comparar uma tradução de um clássico feita hoje a uma feita, digamos, a 50 ou 100 anos atrás. Enquanto o original vai ficando cada vez mais difícil de ser lido em função da mudança da língua, as traduções vão acompanhando o tempo. Acaba que é mais fácil ler uma obra de 200 anos atrás traduzida do que ler um livro escrito em português há 200 anos.

Idiomas, nuances e referências culturais - Esses dias eu fui assistir Blade Runner na Sala Redenção da UFRGS e rolou um painel de debate depois da sessão. O filme, as suas diferentes versões e a discussão do painel valeriam um post por si só, mas desse assunto de linguagem o que me chamou a atenção foi o papel das legendas. As legendas sempre "achatam" demais a fala dos personagens: lembrei agora de quando eu assisti Cidade de Deus legendado em inglês; suficiente pra convencer qualquer um do poder redutor das legendas. Por outro lado, sempre vai ter algum fator cultural que a gente não consegue pegar: por mais fluente que o teu inglês seja, por exemplo, se o filme se passa na Irlanda do século XVI, sempre vai ter alguma expressão estranha. No próprio Blade Runner, teve uma parte que a legenda traduziu "7, 8, café com biscoito", que eu nunca teria associado com a rima infantil. As legendas acabam funcionando também como "notas de rodapé", ampliando o entendimento.

Língua e transparência - Enquanto apanhava pra ler "El Aleph" do Jorge Luís Borges no espanhol original (livro aliás recomendadíssimo pra quem gosta de contos e/ou de realismo fantástico) eu me dei conta de uma coisa meio óbvia, mas que passa batido. A língua nativa da gente tem uma "transparência" que as outras não tem. Um dos contos do livro se passa na Inglaterra. Por algum motivo, era esquisitíssimo ver os personagens ingleses "falando em espanhol". A sensação era como se o livro fosse "dublado". Obviamente, eu nunca tinha sentido isso lendo livros estrangeiros traduzidos em português: não havia barreira mental nenhuma em aceitar que os personagens do Kafka falavam português, mas o castelhano dos ingleses do Borges me chamou a atenção.

Língua e transparência, II - No post do Jean sobre a banda de blues argentina, ele comentou que prefere ouvir blues em línguas que não o português, como o inglês e o espanhol. Essa observação é um eco daquela velha questão do "rock em inglês vs. rock em português", que também rende um bom papo. Tem sempre aquele velho argumento do "é estranho como ouvir samba em japonês", mas no meu caso eu sinto que rock em português acaba tendo, mais ou menos como o Jean disse, uma "cara muito própria". Pra mim, pelo menos, rock em português soa aos ouvidos como "rock nacional", e rock em outras línguas soa como "rock". Curiosamente, a língua nativa é nesse caso menos transparente, talvez porque nesses casos a gente tem o reflexo de se ligar mais na letra da música.

9 comentários:

  1. Sobre a legenda, ela é redutora mesmo, o que eu não acho ruim. Serve para que possamos não só acompanhar a narrativa, mas também para que possamos prestar atenção no que acontece na cena em si.

    Às vezes, basta bater o olho na legenda para entender o sentido do que está sendo dito (o que não é raro de fazermos) e podemos então nos focar na mise-en-scène, nas atuações, nos detalhes.

    (na sequência, comentário mais consistente sobre "Tradução e época", ao qual eu incluo "lugar)

    ResponderExcluir
  2. "masmasmasmas... o texto é a parte mais importante!!!" :)

    Falando sério, eu sou da opinião que, se tu consegue entender tudo, ver um filme sem legenda é muito melhor. Justamente, o tempo gasto olhando a legenda (mesmo que seja só bater o olho) distrai muito das atuações e detalhes. Afinal de contas, quando eu estou ouvindo os personagens, eu posso ver ao mesmo tempo. :)

    Meio relacionado: esses dias eu me dei conta que, em cinema, eu sou movido a diálogo. Esses dias fui ver um filme (which shall remain nameless para evitar o spoiling) em que na primeira metade "nada acontece" e os personagens só ficam conversando, nos preparativos para a segunda metade. Na segunda metade, aí é cheio de cenas de ação, mas passam-se longos minutos sem diálogo.

    Na saída do cinema, teve gente que reclamou pra mim da primeira metade, mas no meu caso na primeira metade eu estava super ligado e na segunda metade eu quase dormi.

    ResponderExcluir
  3. É que nem todo mundo tem esta incrível capacidade de conhecimento da língua inglesa que tu tem, Hisham, a ponto de traduzir do inglês polaco pro inglês britânico. :D

    Sobre o assunto meio relacionado: isso rende uma discussão muito ampla porque eu acho o diálogo uma muleta em si para a narrativa... Mas acontece que nem desdobramos o nosso embate no post do Novo Erudito, hehehehe! Uma de cada vez!

    ResponderExcluir
  4. Para resolver esse problema, vejo os filmes na Tela Quente, que já são dublados...

    ResponderExcluir
  5. Então, sobre tradução e época (e lugar): eu li três diferentes traduções da "Odisseia". A primeira, quando eu era gurizão, foi da coleção Obras-Primas da Abril Cultural. Achei de difícil leitura, graças à erudição um tanto exagerada.

    Lá pelos meus 20 e pouco anos, me bateu um certo purismo e resolvi ler alguma versão em verso (a da Abril era transformada em prosa). Peguei uma ótima versão da Melhoramentos, traduzida por Carlos Alberto da Costa Nunes, assim com a tradução que ele fez para "Ilíada", e gostei imensamente da experiência. Me sentia, por assim dizer, purificado.

    Mas quando eu soube que o professor Donaldo Schüler estava levando a cabo uma nova tradução, fiquei com água na boca. Afinal, ele propunha uma abordagem diferente na tradução, incluindo termos gauchistas e até palavrões (a edição era da LP&M Pocket). Para os puristas, disse ele na época, a edição viria bilíngue, com texto original em grego do lado. Explicitou que não queria ser fiel a uma obra que já era parte de toda a cultura universal e que, na verdade, era a infidelidade que lhe interessava. Diz ele na apresentação do primeiro volume, "Telemaquia" (LP&M, 2007, pág. 10):

    "Pretendemos, nesta tradução, afrouxar a carga sintática e vocabular que abafa vozes juvenis. Mantemos diálogo entre nosso tempo e outros tempos. Tivemos em mira fazer personagens reviverem em nosso dizer coloquial. Se xinagm, que xinguem em português. Quisemos criar ritmos livres, não subordinados a modelos (...). As repetições, lembranças da literatura oral, aparecem modificadas, moduladas, contornadas em consonância com procedimento da literatura escrita".

    Tudo isso para concordar com o Hisham que é uma delícia pegar estas grandes pilares literários e lê-los em diferentes formatos e traduções. Parecem apenas enriquecer o universo de interpretações e influência que eles possuem.

    ResponderExcluir
  6. Já que eu soube que a minha declaração de que o diálogo nos filmes pode ser uma muleta narrativa causou celeuma, permito-me comentar, hehehehe.

    O diálogo é mais uma das inúmeras ferramentas narrativas que os cineastas têm à disposição. Delas, a mais importante sempre foi e sempre será a montagem, a justaposição de diferentes tomadas de câmera que, quando unidas, criam um significado próprio (o texto já é decorado, viu gente). É o que permitiu o cinema mudo existir e ser bem-sucedido estática e comercialmente. Já dizia titio Hitchcock: "If it's a good movie, the sound could go off and the audience would still have a perfectly clear idea of what was going on".

    Aliás, reza a lenda que Hitch gostava se assisitir a filmes sonoros sem som, e se divertia quando "pegava" em qual momento o público perderia a história, por conta da narrtiva ter que depender demais dos diálogos.

    Enfim, talvez este filme que tu tenha assistido (posso saber qual? Por favor, por favor, por favor!) tenha fracassado exatamente ao não saber como criar um equilíbrio entre um início muito falado e um final muito imagético.

    ResponderExcluir
  7. Bom, como tecnicamente o filme está na metade e se trata de uma história real, não é tão spoiler assim: o filme em questão é "Che - Parte 1", do Steven Soderbergh.

    ResponderExcluir
  8. E Ulisses, mesmo antes da tua (interessante) explicação, eu já tinha feito o link entre esse comentário e esse. :)

    (Aliás, fiquei desapontado com os resultados daquele post tão legal que tu fez. Um blog cheio de músicos aqui e uns quantos nem se pronunciaram quanto a que música queriam ter feito... shame on you guys!)

    ResponderExcluir
  9. Pois é, o pessoal não se animou muito... Fazer o quê? A Série D parece infinitamente mais interessante, hehehe!

    ResponderExcluir