Um dos assuntos do ano passado no mundo da música foi a popularização do "auto-tune", um software que permite corrigir as notas desafinadas de uma gravação, corrigindo os erros do cantor ou cantora sem que eles tenham que tentar de novo. (O software original é o
Antares Autotune, que já virou nome genérico tipo chamar esponja de aço de "bombril", mas existem outros como o
V-Vocal e o
Melodyne.)
Em 2008 se falou tanto de auto-tune que ele entrou numa
lista de coisas de 2008 que não sentiremos falta, junto com "fenômenos" como a Sarah Palin. O motivo foi que o auto-tune exagerado de modo a deixar a voz robótica (que entrou no mainstream com "Believe" da Cher) virou moda no mundo do rap/r'n'b -- caras como o
T-Pain (cuidado: o link leva a uma música do T-Pain!) construíram sua carreira de "cantores" graças ao software mágico, que hoje em dia tem também uma versão real-time para usar em shows ao vivo.
O outro motivo pelo qual o auto-tune foi tão falado é que têm vindo a público várias ocasiões em que o efeito tem sido usado sorrateiramente para esconder erros dos artistas. Na apresentação do Superbowl de 2007, o Billy Joel foi
pego usando auto-tune ao vivo: percebam o efeito "degrau" que o software produz na nota em 1:11, quando ele canta
"and the rocket's red glare".
Nesse site fizeram uma compilação de momentos na música pop em que os efeitos da correção aparecem. Com a evolução do software, rateadas como essas -- dos produtores, falhando ao esconder bem as rateadas dos cantores e deixando o auto-tune "visível" -- estão cada vez menos frequentes, então é cada vez menos possível saber quem está cantando "de verdade" e quem está ganhando uma "ajudinha" do computador.
Não faltam exemplos por aí, de Paramore e Marjorie Estiano até Winger e
Yes (ouvir em 1:20). Uma questão interessante é até que ponto o artista tem "culpa no cartório". A Marjorie Estiano é, independente de se gostar ou não do estilo dela, uma cantora excelente; pelo que eu já vi dela cantando ao vivo na TV nitidamente sem auto-tune, ela não precisaria dele pra gravar um disco. O Brendon Flowers, vocalista do Killers, disse que no primeiro álbum, "Hot Fuss", o auto-tune foi usado pelos produtores sem ele sequer ficar sabendo e que no segundo, "Sam's Town", ele pediu para que não usassem (e realmente dá para notar como a voz soa mais natural).
Mas usar o auto-tune pra botar uma nota no lugar é "roubar"? O uso de técnicas de estúdio para produzir um vocal "perfeito" é quase tão antigo quanto a tecnologia de gravação de áudio. Nesse
artigo de 1959, o autor denuncia como "quase qualquer um pode virar um cantor" graças a "ajudinhas" como equalização, reverberação e edição. Todas essas são práticas comuns hoje em dia: não se pensa em fazer sequer uma demo sem passar o vocal por eq e reverb, e regravar uma frase errada é muito mais rápido do que fazer o cantor refazer a música toda. Basta ler as liner notes do Anthology dos Beatles para ver como muitas músicas deles têm vocais montados a partir de vários takes. É comum gravar um vocal frase por frase, inclusive.
Mas e quanto a recursos que efetivamente mudam as notas que estão sendo cantadas, como o auto-tune? Bom, isso também se faz há muito tempo. A maneira mais primitiva consistia em mexer na velocidade da fita ao gravar, tipicamente reduzindo a velocidade, gravando, e voltando à velocidade normal para que a voz gravada ficasse mais aguda, alcançando notas que eles não conseguiriam só no gogó. O Pink Floyd admite ter feito isso em "
Welcome to the Machine"
(ouvir em 4:15) e o Queen nos backing vocals de "
'39"
(ouvir em 1:51). Mais tarde, nos anos 80, vocais eram endireitados usando um
vocoder, isto é, passando o sinal da voz pela modulação de um sintetizador que era tocado com as notas certas -- o princípio é o mesmo do auto-tune, mas muito mais primitivo: ouçam como o vocal isolado de "Rock of Ages" do
Def Leppard soa mecânico como o T-Pain (ouvir em 1:31)... a solução:
escondê-lo num mar de backing vocals (ouvir em 1:33).
E aí? Alternativa prática para corrigir aquele errinho e aproveitar o take original cheio de emoção, evitando que o vocalista tenha que gravar 20 takes até acertar todas as notas, invariavelmente soando entediado no vigésimo take? Artimanha pra transformar qualquer celebridade em cantor ou cantora da noite pro dia? (Ou como é que vocês acham que a Paris Hilton gravou um disco?) Recurso que possibilita a atores fazer
papéis que demandem cantar independentemente do treinamento musical? (Eu pessoalmente acho o desafinar de atores em musicais um charme característico do gênero; "Hoje é dia de Maria" me vem à mente.) Uma performance vocal perfeita montada em estúdio é representativa do talento do artista? Bom, o assunto tá na mesa.